Rudyard
Rios
O
artigo mostra como a medida vem alterando casamentos, um ano após decisão do
STF liberar pessoas acima de 70 anos para escolherem o regime de bens.
Em
fevereiro de 2024, o STF fixou, no julgamento do Tema 1.236 da repercussão
geral (ARE 1.309.642), uma das decisões mais emblemáticas do Direito de Família
contemporâneo: a separação obrigatória de bens para pessoas maiores de 70 anos
deixou de ser uma imposição legal, passando a depender da vontade expressa das
partes, mediante escritura pública.
A
tese firmada foi clara:
"Nos
casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de 70 anos, o regime de
separação de bens previsto no art. 1.641, II, do Código Civil, pode ser
afastado por expressa manifestação de vontade das partes mediante escritura
pública."
A
decisão representou uma guinada constitucional, o reconhecimento de que a
idade, isoladamente, não retira a capacidade plena para decidir sobre o próprio
patrimônio e as próprias relações afetivas. Um ano depois, os reflexos começam
a se delinear, revelando um cenário de avanços, cautelas e desafios.
Mais
do que uma mudança de regime patrimonial, a decisão do STF representa uma
inflexão contra o etarismo institucionalizado.
Durante
décadas, a presunção de incapacidade patrimonial após os 70 anos expressou uma
visão paternalista que, sob o pretexto de proteger, retirava a autonomia e o
protagonismo da pessoa idosa.
Ao
reconhecer a liberdade de escolha no regime de bens, o Supremo rompeu com esse
estereótipo da velhice tutelada e reafirmou que envelhecer não significa perder
discernimento, mas acumular legitimidade para decidir a própria vida.
Essa
mudança dialoga com o movimento internacional de combate ao ageísmo (ou
etarismo), reconhecendo que a limitação por idade é uma forma de discriminação
tão grave quanto a de gênero, raça ou orientação sexual.
O
Direito de Família, portanto, dá um passo civilizatório: substitui o medo de
abuso pela confiança na capacidade, transformando proteção em empoderamento.
Do
paternalismo à autonomia
O
art. 1.641, II, do CC previa o regime obrigatório de separação de bens como uma
medida protetiva, voltada a impedir casamentos "por interesse" e
preservar o patrimônio da pessoa idosa.
O
STF, contudo, entendeu que essa regra violava a dignidade da pessoa humana, o
direito à igualdade e a liberdade de autodeterminação, ao impor uma limitação
automática e discriminatória baseada apenas na idade.
Como
observou o ministro Luís Roberto Barroso, relator do caso, a norma "impede
que pessoas plenamente capazes, em gozo de suas faculdades mentais, definam o
regime mais adequado à sua vida em comum". A Corte ainda modulou os
efeitos da decisão: a mudança vale para o futuro, sem reabrir processos de
inventário ou partilha já encerrados, proposta acolhida pelo ministro Cristiano
Zanin, em respeito à segurança jurídica.
Reflexos
no primeiro ano
1.
Casamentos e uniões com liberdade parcial
Segundo
levantamento do CNB/PR - Colégio Notarial do Brasil - Seção Paraná,
aproximadamente 20% dos casais em que pelo menos um dos nubentes tem mais de 70
anos já optaram por um regime diferente da separação total de bens.
Entretanto,
como mostrou a Agência Brasil em março de 2025, a maioria dos casamentos
envolvendo idosos ainda mantém o regime tradicional de separação, seja por
desconhecimento da nova regra, seja por orientação conservadora de familiares e
tabeliães.
2.
Aumento de escrituras e pactos antenupciais
Advogados
e tabeliães relatam maior procura por escrituras públicas para formalizar a
escolha de regime diverso, tanto em uniões estáveis quanto em casamentos. O
Colégio Notarial do Brasil (CNB/SP e CNB/DF) indica que a decisão estimulou uma
nova cultura de planejamento patrimonial e sucessório entre idosos, que antes
se viam compelidos a aceitar a separação obrigatória.
3.
Inventários e disputas sucessórias
Nos
tribunais estaduais, começam a surgir pedidos de alteração de regime de bens
com base no novo entendimento, especialmente em uniões estáveis formalizadas há
poucos anos. No entanto, a modulação de efeitos imposta pelo STF tem servido
como barreira para reabertura de partilhas já concluídas.
Casos
recentes de TJ/SP e TJ/MG ilustram essa cautela: os juízes têm permitido a
mudança apenas com efeitos futuros, evitando conflitos sucessórios retroativos.
4.
Mudança de mentalidade
Mais
do que alterar o CC na prática, a decisão vem transformando a percepção social
sobre a velhice e a capacidade civil. A ideia de que o idoso precisa ser
protegido de si mesmo perde força, cedendo espaço a uma concepção de cidadania
plena e participativa, que reconhece a maturidade afetiva e jurídica da
terceira idade.
Desafios
e lacunas
Apesar
do avanço, a efetividade da decisão ainda encontra entraves:
Baixa
divulgação pública: Muitos cidadãos e até advogados desconhecem a possibilidade
de optar por outro regime de bens.
Resistência
cultural: Parte das famílias e dos próprios cartórios mantém uma leitura
paternalista da norma.
Custos
e burocracia: A exigência de escritura pública ou autorização judicial pode
limitar o acesso de casais de baixa renda.
Ausência
de uniformização jurisprudencial: Tribunais estaduais ainda divergem quanto à
aplicação do novo entendimento em uniões estáveis informais.
Além
disso, há debates sobre a capacidade civil e o consentimento informado de
pessoas idosas, exigindo atenção redobrada de tabeliães e magistrados para
evitar fraudes patrimoniais travestidas de liberdade.
Perspectivas
futuras
A
decisão do STF gerou um movimento legislativo: tramita na Câmara dos Deputados
um projeto para atualizar o CC e eliminar expressamente a obrigatoriedade de
separação de bens por idade.
Essa
convergência entre jurisprudência e legislação tende a consolidar o novo
paradigma: a liberdade de escolha como regra, a restrição como exceção.
Nos
próximos anos, espera-se:
Ampliação
das escrituras declaratórias de regime patrimonial;
Maior
integração entre registros civis e tabelionatos;
Revisão
de súmulas do STJ sobre efeitos patrimoniais em casamentos de pessoas idosas;
E a
consolidação de políticas públicas de orientação jurídica voltadas à terceira
idade.
Conclusão
Um
ano após o julgamento do STF, é possível afirmar que a mudança jurídica foi
mais veloz que a mudança cultural. Ainda que muitos casamentos de idosos
mantenham o regime tradicional de separação, a decisão abriu caminho para um
novo tempo em que a velhice deixa de ser sinônimo de tutela e passa a ser
reconhecida como expressão de liberdade e discernimento.
O
desafio agora é transformar essa conquista constitucional em prática cotidiana:
simplificar procedimentos, difundir a informação e assegurar que o direito de
escolher o regime de bens seja, de fato, exercido por todos, sem preconceitos
etários, morais ou patrimoniais.
Fonte:
Migalhas