Vitor
Frederico Kümpel, Natália Sóller e Fernando Keutenedjian Mady
A
reforma administrativa, entre seus objetivos, buscou redefinir a estrutura
remuneratória dos servidores públicos, instituindo novos níveis de carreira e
limites remuneratórios. Seu propósito central, conforme divulgado, é o de
"dotar o Estado de maior capacidade, qualidade e velocidade" na
prestação dos serviços públicos, ou seja, garantia da eficiência, vetor
constitucional do art. 37, caput, CF.
No
conjunto de mudanças legislativas apresentadas, inclui-se uma PEC voltada à
alteração do art. 236 da lei maior, com o objetivo de modificar as regras
relativas à percepção de emolumentos e à aposentadoria compulsória dos
titulares das serventias notariais e registrais.
Entretanto,
as alterações sugeridas podem gerar reflexos maiores do que aparentam à
primeira vista, produzindo impactos estruturais na forma de exercício da
atividade notarial e registral e podendo gerar efeitos adversos em vez de
benefícios.
Toda
e qualquer mudança dessa natureza deve ser cuidadosamente analisada quanto aos
seus reflexos sistêmicos. A CF/88, enquanto norma fundamental do ordenamento
jurídico, estabelece as bases do regime jurídico das atividades de notas e de
registro no país. Assim, qualquer modificação em seu texto tem o potencial de
alterar a própria natureza da delegação e de romper o equilíbrio normativo
cuidadosamente construído.
Alterar
a Constituição deveria ser sempre uma medida excepcional por gerar reflexos
drásticos. Seus efeitos irradiam-se por todo o sistema jurídico, razão pela
qual devem ser profundamente ponderados e fundamentados, sob pena de
comprometer princípios estruturantes podendo impactar na coerência
institucional do modelo vigente.
1.
Modificações do art. 236, CF
A
proposta ampliou a redação dos §1º e 2º do referido dispositivo, mas sem
grandes implicações práticas, na medida em que a lei 8.935/1994 e a lei
10.169/00 já regulamentam o conteúdo elencado nos dois primeiros parágrafos. As
alterações mais relevantes, que geram impactos diretos na sistemática atual da
atividade, encontram-se nos §4º e §5º acrescidos ao art. 236.
O
§4º estabelece um teto remuneratório anual de treze vezes1 o valor do limite
remuneratório definido no inciso XI do art. 37, ou seja, treze vezes 90,25% dos
proventos mensais em espécie de um ministro do STF. O §5º, por sua vez,
institui a aposentadoria compulsória ao agente delegado quando atingir 75 anos
de idade.
Redação
atual
Redação
da PEC
Art.
236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por
delegação do Poder
Público. (Regulamento)
§ 1º
Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal
dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a
fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.
§ 2º
Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos
aos atos praticados pelos serviços notariais e de
registro. (Regulamento)
§ 3º
O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de
provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem
abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses.
"Art.
236.
......................................................................................
§ 1º
Lei nacional regulará as atividades dos serviços notariais e de registro,
incluindo:
I -
a obrigatoriedade de constituição de sociedade de propósito específico pelos
notários e oficiais de registro, observada a responsabilidade pessoal do
delegatário;
II -
a responsabilidade civil, administrativa e criminal dos notários, dos oficiais
de registro e de seus prepostos;
III
- a obrigatoriedade de compartilhamento com o Poder Público das informações e
dados necessários para formulação, implementação e avaliação de políticas
públicas; e
IV -
a forma de fiscalização de atos notariais e de registro pelo Poder Judiciário,
sob supervisão do Conselho Nacional de Justiça.
§ 2º
Lei nacional estabelecerá:
I -
o valor dos emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais
e de registro, asseguradas a proporcionalidade aos custos dos serviços, a
isonomia entre os usuários e a transparência ativa dos valores arrecadados;
II -
o valor da taxa de fiscalização pelo Poder Judiciário;
III
- os mecanismos para compensação de gratuidades legais e equalização entre
serventias deficitárias e superavitárias; e
IV -
a destinação de eventuais saldos remanescentes de emolumentos.
......................................................................................................
§ 4º
A retribuição líquida anual percebida pelos delegatários de serviços notariais
e de registro, após a dedução das despesas necessárias à operação do serviço,
nos termos definidos pelo Conselho Nacional de Justiça, não poderá exceder a
treze vezes o valor do limite remuneratório definido no inciso XI do art. 37
desta Constituição.
§ 5º
O exercício da atividade notarial e de registro cessará, compulsoriamente,
quando o delegatário atingir setenta e cinco anos, observados os procedimentos
e prazos fixados pelo Conselho Nacional de Justiça para a vacância e a
continuidade do serviço." (NR)2
2.
Argumentos suscitados nos debates sobre a reforma
Em
análise dos debates sobre a reforma administrativa3 disponibilizado
oficialmente pela Câmara dos Deputados, é possível perceber que o argumento
favorável às alterações propostas ao art. 236 foram defendidos unicamente pelo
deputado Pedro Paulo, e segundo ele:
Por
último, os cartórios. Vamos tratar dos cartórios, sim. Os emolumentos de
cartório é preço público. É preço público que pesa para o cidadão e pesa para
as empresas. Vamos tocar nesse ponto. Vamos disciplinar os emolumentos. Vamos
tratar, por exemplo, da questão da transparência dos cartórios na informação
sobre os recebimentos. Vamos deixar muito mais claro esse jogo, no diálogo,
conversando com as instituições. Os cartórios têm que estar dentro da reforma
administrativa - p. 203.
Em
sentido oposto, contrários à proposta de reforma do art. 236, se manifestaram
José Paulo Baltazar Junior, Moema Locatelli Belluzzo:
O
Presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil discursou na Comissão
Geral sobre a reforma administrativa. Informou que desde março de 2024 o
protesto de Certidões de Dívida Ativa recuperou mais de R$ 69 bilhões sem custo
para o orçamento. Ressaltou que, desde 2007, foram mais de 3 milhões de
inventários e 1,3 milhão de divórcios extrajudiciais, além de R$ 104 bilhões
executados em alienação fiduciária entre 2022 e 2024. Também enfatizou que os
cartórios praticaram mais de 208 milhões de atos gratuitos desde 1997 e
concluiu que essas instituições oferecem eficiência, reduzem a judicialização e
devem ser vistas como parte da solução na reforma administrativa - p. 283 -
José Paulo Baltazar Junior (sic).
A
Diretora Executiva da Associação dos Notários e Registradores do Brasil
discursou na Comissão Geral sobre a reforma administrativa. Relembrou
experiências passadas de prestação direta da atividade notarial e registral
pelo Estado, que resultaram em filas e ineficiência, e defendeu a manutenção do
modelo privado como essencial para a eficiência do serviço. Além disso, alertou
que muitos valores pagos pelos usuários são repassados a outros órgãos, como
Defensoria Pública e bancos, e sugeriu que a reforma administrativa considere a
eliminação desses custos extras.
Entretanto,
essa determinação dos concursos vem sendo paulatinamente aplicada. Temos
Estados que só aplicaram até hoje um concurso público. O avanço do concurso
público gera confusão. Por vezes, pode parecer que notários e registradores são
servidores públicos, mas não o são. No art. 39 da Constituição, que trata dos
servidores públicos, a atividade notarial e registral não está incluída ali.
Portanto, o concurso público não cria um vínculo funcional com o Estado.
Notários e registradores não são servidores públicos, e cartório não é
repartição pública. Os notários e os registradores assumem o cartório por sua
conta e risco. Isso quer dizer que não contam com garantias próprias dos
servidores: estabilidade, férias remuneradas, etc. Toda a estrutura de um cartório,
desde o prédio, mobiliário, equipamentos, folha de salários, tributos, é do
bolso do notário e registrador aprovado em um dos concursos públicos mais
rígidos do Brasil. - p. 302 - Moema Locatelli Belluzzo (sic).
Verifica-se
que os debates em torno da proposta de alteração foram limitados, com reduzido
espaço para manifestações e discussões qualificadas sobre o tema. Todavia, a
mudança sugerida demanda uma análise muito mais profunda e abrangente, diante
do potencial de repercussão em todo o sistema jurídico e institucional das
atividades notariais e registrais.
Aparenta-se
não ter havido o devido amadurecimento técnico e político da proposta, uma vez
que a inclusão dos cartórios no escopo da reforma administrativa foi defendida
exclusivamente por um único parlamentar nos debates, e os fundamentos
específicos para a modificação do art. 236 da CF também não devidamente
explicitados ou demonstrados nos próprios considerandos da PEC.
3.
Emolumentos e a realidade financeira dos cartórios - percepções equivocadas
Conforme
se depreende das manifestações do deputado Pedro Paulo, os principais pontos
que motivaram a inclusão das serventias extrajudiciais na Reforma
Administrativa foram a questão dos emolumentos e a suposta falta de
transparência em sua percepção.
Cumpre
destacar, desde logo, que os emolumentos são valores fixados por lei - nos
termos do art. 2º da lei 10.169/00 -, ou seja, definidos pelo próprio Poder
Público. Nessas normas, estão expressamente previstos diversos repasses
obrigatórios a órgãos e instituições públicas, como o Poder Judiciário, o
Ministério Público, a Defensoria Pública e entidades de assistência social, a
exemplo das Santas Casas, entre outras definidas por lei.
Durante
os debates da reforma, tais repasses foram, de forma equivocada, denominados
"penduricalhos", como se representassem distorções ou encargos
indevidos ao Estado. No entanto, tratam-se de parcelas que constituem
importante fonte de receita pública - em outras palavras, os emolumentos já
integram o fluxo de recursos do próprio Estado, promovendo uma verdadeira
retroalimentação do sistema. A sua distribuição, portanto, obedece a uma lógica
funcional e legalmente estruturada.
Ademais,
há plena transparência quanto à arrecadação e à destinação dos emolumentos,
sendo essas informações amplamente disponibilizadas ao público por meio do
portal Justiça Aberta, mantido pelo CNJ.
Existe
uma percepção equivocada acerca do faturamento das serventias extrajudiciais, o
que leva ao entendimento (igualmente errôneo) de que a fixação de um teto
remuneratório implicaria que os valores excedentes das serventias
superavitárias representariam uma significativa fonte de receita adicional ao
Estado - capaz, inclusive, de ser redirecionada para outras finalidades ou para
a redução de despesas públicas. Embora esse argumento não tenha se apresentado
de forma expressa nos debates, acredita-se que seja o que fundamentou a
alteração do art. 236 da CF nos moldes propostos.
É de
conhecimento geral que algumas serventias realmente apresentem elevado
faturamento, contudo trata-se de casos isolados dentro do panorama nacional.
Dados da ARPEN-SP4 demonstram que o faturamento bruto dos cartórios
brasileiros - isto é, sem considerar os repasses obrigatórios e os custos
operacionais de gestão - revela uma realidade bastante heterogênea e distante
da imagem de riqueza generalizada que comumente se atribui ao setor. Segundo os
dados, o faturamento está distribuído da seguinte forma:
5.265
têm receitas de até cinco mil reais por mês;
1.427
têm receitas entre cinco mil e dez mil reais por mês;
2.835
têm receitas entre dez mil e cem mil reais por mês;
629
geram entre cem mil e quinhentos mil reais por mês;
103
cartórios geram mais de quinhentos mil reais por mês.
Ainda,
número recente indica que 2.602 dos cartórios no país são "considerados
deficitários, que não se sustentam com a própria receita e dependem de fundos
de compensação, custeados pelos cartórios maiores"5. Como se sabe, um dos
repasses dos emolumentos é direcionado aos Fundos de custeio das serventias
deficitárias - que são a maioria no país - e dependem disso para seu
funcionamento.
Como
exemplo disso, em julho de 2025, no Paraná, "o Funarpen - Fundo
de Apoio ao Registro Civil das Pessoas Naturais garantiu a sobrevivência de 166
Cartórios deficitários no Paraná, que desembolsou, no mesmo mês, R$
1.934.499,69 para assegurar a renda mínima dessas unidades"6.
É
fácil constatar, portanto, que a fixação de um teto remuneratório para as
serventias extrajudiciais está longe de representar solução para o equilíbrio
fiscal do país. Ao contrário, tal medida apenas transferiria encargos ao
Estado, ampliando suas despesas e comprometendo a autonomia e a eficiência do
sistema notarial e registral.
4.
Mudança do regime da atividade notarial e registral - não adequação da redação
proposta
Nos
termos do art. 236, caput, da CF - que foi, inclusive, mantido na PEC - os
serviços notariais e de registro são prestados por particulares por delegação
do Poder Público, não se caracterizando como cargo ou emprego público. O agente
delegado particular é definido por Hely Lopes Meirelles como:
Particulares
que recebem a incumbência da execução de determinada atividade, obra ou serviço
público e o realizam em nome próprio, por sua conta e risco, mas segundo as
normas do Estado e sob a permanente fiscalização do delegante. Esses agentes
não são servidores públicos, nem honoríficos, nem representantes do Estado;
todavia, constituem uma categoria à parte de colaboradores do Poder Público.
Nessa categoria encontram-se os concessionários e permissionários de obras e
serviços públicos, os serventuários de ofícios não estatizados, os leiloeiros,
os tradutores e intérpretes públicos, as demais pessoas que recebem delegação
para a prática de alguma atividade estatal ou serviço de interesse
coletivo7.
A
atividade notarial e registral é exercida sob a forma de delegação estatal de
natureza especial, uma vez que, embora possua caráter público, sua execução se
dá em regime privado. O delegatário atua, portanto, como verdadeiro gestor da
unidade - com independência funcional, nos termos do art. 28 da Lei nº
8.935/19948 -, sendo integralmente responsável pela administração da
serventia, contratação e remuneração de funcionários, manutenção da estrutura
física e tecnológica, aquisição de equipamentos e pela qualidade dos serviços
prestados à população.
A
previsão legal assegurando a percepção integral dos emolumentos aos notários e
registradores decorre, justamente, da independência funcional que lhe é
atribuída. A independência o torna responsável por toda a gestão da serventia,
respondendo o titular pessoalmente pelas despesas de custeio, investimento,
funcionários, etc. O titular, inclusive, assume responsabilidade civil,
criminal e trabalhista de forma pessoal pelos atos praticados na atividade9.
Ao
se instituir um teto remuneratório - isto é, ao impedir a percepção integral
dos emolumentos - compromete-se diretamente a independência funcional do
delegatário, uma vez que a liberdade de gestão dos próprios recursos passa a
ser restringida. Com isso, perde-se uma das características essenciais da
figura do particular em colaboração com o Poder Público: a assunção de risco
decorrente da autonomia administrativa e financeira da serventia.
É o
chamado Princípio da Simetria: há o recebimento integral dos emolumentos, na
medida em que o Estado não custeia nada e atribui todos os gastos ao titular.
Muitas
vezes, inclusive, o titular, ao assumir uma serventia há muito tempo vaga,
investe do seu bolso para depois conseguir reaver os gastos com a prática dos
atos e continuar aprimorando a estrutura física e a capacitação dos
funcionários.
Observe-se,
por exemplo, a situação prática da Pandemia. Na ocasião, inúmeros serviços
públicos recrudesceram, pois o Estado foi onerado com todos os gastos em razão
do Covid-19, por outro lado, os cartórios aprimoraram seus serviços com as
plataformas digitais e continuaram a prestação normalmente, sem qualquer gasto
extra para o Estado. Pelo contrário, a continuidade dos serviços possibilitou a
continuidade dos repasses de emolumentos.
É
inconcebível dissociar o direito à percepção integral dos emolumentos do risco
assumido pelo delegatário: ambos são elementos indissociáveis e proporcionais à
responsabilidade que lhe é atribuída na prestação de um serviço público
essencial.
Além
disso, a percepção integral dos emolumentos estimula a probidade e
transparência, na medida em que não haverá qualquer interesse do titular em
distorcer os gastos de custeio do serviço e ele sempre irá buscar a melhoria e
a qualidade dos atos praticados. A limitação de emolumentos sem considerar os
portes das serventias compromete a probidade e a boa prestação.
A
previsão de aposentadoria compulsória é igualmente típica do regime jurídico
aplicável aos servidores públicos, e não aos agentes delegados, cuja natureza é
eminentemente privada. A adoção de tais limitações - teto remuneratório e
aposentadoria compulsória - descaracteriza o modelo jurídico de delegação
previsto na Constituição, pois transfere ao Estado o ônus e o risco inerentes à
atividade, subvertendo o equilíbrio original do sistema.
Portanto,
é evidente o descompasso entre a manutenção do caput do art. 236 e os §4º e 5º
inseridos na PEC. Não se trata tão somente de estabelecer um teto remuneratório
e uma regra de aposentadoria, a proposta de alteração legislativa desvirtua
toda a natureza da atividade e seu regime jurídico.
Para
tornar as limitações factíveis, seria necessário alterar a formatação do regime
jurídico da atividade, que não mais se caracteriza como delegação a particular
com a instituição de teto remuneratório e aposentadoria compulsória. Conciliar
a redação anterior com os novos parágrafos geraria um "Frankenstein"
jurídico, que não funciona nem de um jeito e nem de outro, criando falhas
graves na manutenção da atividade.
5.
Confiança e custos da atividade notarial e registral - a alteração de regime
jurídico realmente compensa?
Não
obstante à crítica aos novos parágrafos, questiona-se até que ponto é benéfica
a readequação do regime da atividade notarial e registral?
As
alterações na forma como foram propostas, como visto, geram a quebra da
natureza do regime em forma de delegação a um particular. O que não foi
considerado na PEC, contudo, é que a atividade notarial, desde seu início no
Brasil, foi exercida em caráter privado, como uma espécie de delegação do Poder
Público, desde 1530 - com Carta Régia a Martim Alfonso de Souza - delegando
toda a administração da Capitania, inclusive a responsabilidade por atos
notariais10.
O
modelo de delegação ao particular, que assume os riscos da atividade e gerencia
toda a serventia, vigora há quase 500 anos, o que evidencia que é uma estrutura
funcional.
Um
levantamento da Datafolha de 2023 revelou que 76% dos usuários estão
satisfeitos com os serviços prestados pelos cartórios e manifestam o desejo de
que um número ainda maior de documentos possa ser emitido diretamente nessas
unidades, presentes em todos os municípios do país. Os cartórios brasileiros
lideram os índices de confiança, relevância e qualidade entre os serviços
públicos e privados, ocupando a primeira colocação em comparação com outros 14
órgãos públicos avaliados11.
Além
disso, durante os debates da Reforma, foram apresentados dados que comprovam a
expressiva arrecadação e a relevante economia gerada ao Estado pelas serventias
extrajudiciais. Trata-se de instituições nas quais a população deposita elevado
grau de confiança, justamente porque seus titulares são dotados de fé pública -
elemento que confere legitimidade, segurança e eficiência ao sistema notarial e
registral.
Diante
desse contexto, impõem-se algumas indagações: teria sido realizado, de fato, um
estudo estatístico consistente que fundamentasse a proposta da PEC? E mais: a
alteração sugerida não comprometeria a qualidade dos serviços, bem como a
confiança e a segurança jurídica que eles proporcionam à sociedade?
O
principal diferencial do atual modelo de autonomia funcional reside na lógica
de corresponsabilidade: quanto mais eficiente e qualificado o serviço, maior o
desenvolvimento da serventia - e, por consequência, maior também o retorno
financeiro ao Estado. Limitar uma dessas frentes significa, inevitavelmente,
limitar a outra, pois ambas são interdependentes. A restrição proposta,
portanto, não contraria os próprios objetivos declarados da Reforma?
Os
riscos assumidos pelos titulares permaneceriam os mesmos, com igual carga de
responsabilidades e obrigações, mas haveria inevitável redução de receita. Essa
diminuição, por sua vez, repercutiria negativamente na qualidade dos serviços,
na confiança social depositada nas serventias e, em última análise, na
arrecadação do próprio Estado.
Vamos
supor, por outro lado, que eventuais ajustes na redação da proposta levem o
Estado a assumir diretamente os riscos da atividade, descaracterizando por
completo a delegação a particulares e transformando os titulares em servidores
públicos - conforme parece ser a pretensão implícita da PEC. Assim,
questiona-se: isso não acarretaria um aumento expressivo de custos ao próprio
Estado?
Atualmente,
o risco da atividade recai integralmente sobre o delegatário, que é o
responsável pela gestão administrativa e financeira da serventia, pela
contratação e remuneração de funcionários, bem como por todas as despesas de
manutenção e investimento. Caso o Estado reassuma a execução direta desses
serviços, romperá um modelo historicamente consolidado - em vigor há quase 500
anos - e passará, pela primeira vez, a arcar com todos os ônus da atividade.
É
importante ressaltar que o sistema notarial e registral sempre funcionou sem
qualquer custo para o erário, representando um caso singular de eficiência
administrativa: o Estado colhe os resultados positivos da atividade, sem
despender recursos públicos para sua manutenção. Transformar os titulares em
servidores públicos implicaria a criação de despesas permanentes e
imprevisíveis, sem que existam estudos técnicos, dados empíricos ou
experiências anteriores que validem tal mudança.
Em
suma, corre-se o risco de criar um problema inexistente - onerando o Estado e
fragilizando um modelo que, até aqui, se mostrou funcional, sustentável e
socialmente confiável.
6.
Uma terceira via adequada
Os
cartórios podem, de fato, ser contemplados em outra Reforma Administrativa -
não pela via da equiparação indevida aos servidores públicos, mas a partir do
reconhecimento de suas particularidades e da natureza delegada da função. Para
que haja uma reforma nesse sentido, seria primordial uma análise prévia, a qual
não foi realizada para a proposição da PEC.
Um
eventual teto remuneratório pode ser discutido, desde que adequado às
especificidades da atividade, considerando fatores como a demanda local, o
volume de atos praticados e a realidade econômica de cada região, e não
simplesmente com base no art. 37 da CF/88, que regula situações de natureza
diversa, qual seja a dos servidores públicos.
É
necessário haver um estudo cauteloso, baseado em dados numéricos, a ser
realizado com técnica e precisão - e não simplesmente uma alteração direta do
art. 236 da Constituição Federal sem a análise prévia de risco. A atividade
possui uma natureza sui generis, e não pode ser alterada de forma drástica sem
o estudo prévio, sob pena de decaimento do serviço prestado e prejuízo direto à
população e ao Estado.
Os
cartórios, por terem capilaridade, atendem a demanda local, que é extremamente
variável conforme a localidade da serventia, na medida em que existem cidades
mais populosas e com maior tráfego jurídico. Não é possível estabelecer uma
única faixa fixa. Os cartórios, inclusive, são organizados em Classes pelo
próprio CNJ para fins de adoção de padrões mínimos de tecnologia de acordo com
o seu faturamento (Provimento nº 74/2018). Esse é um critério, por exemplo,
mais lógico e que teria sentido para garantir que as serventias se mantivessem
funcionais. Mas, repise-se que é imprescindível uma análise mais detalhada e
cautelosa, baseada em estudo estatístico.
E o
excedente arrecadado em cartórios superavitários deve permanecer dentro da
própria atividade, revertendo-se em verba para o fundo das serventias
deficitárias a ser convertido melhorias estruturais, tecnológicas e de gestão
de outros cartórios. Essa redistribuição interna reduziria as discrepâncias
econômicas entre as serventias, fortalecendo o sistema, otimizando o serviço e
valorizando tanto a função quanto o Estado que dela se beneficia. Não pode esse
excedente se tornar uma verba de utilização livre do Estado, sem qualquer
transparência e sem um objetivo que não seja melhorar a própria prestação do
serviço à população.
Também
é legítima a discussão sobre a fixação de um limite etário para o exercício da
delegação, desde que não se confunda com aposentadoria compulsória -
incompatível com a natureza jurídica do agente delegado, que não é servidor
público. Cria-se, de fato, uma situação jocosa ter uma pessoa de idade muito
avançada prestando um serviço com fé-pública; a limitação de idade é positiva
para a própria atividade, reforçando a confiança da população no titular.
Assim,
o limite de idade pode servir à renovação institucional e à manutenção da
confiança social, sem ferir a autonomia nem a estabilidade do modelo, apenas
deve ser adequado para não se confundir com aposentadoria compulsória, bastando
configurar uma regra de tempo de permanência na delegação.
O
equívoco nesta reforma administrativa está em tomar como referência as poucas
serventias superavitárias em detrimento de todo um sistema que, historicamente,
se mostra funcional, autossustentável e eficiente, prestando serviços de alta
relevância pública e dotados de fé pública. A atividade notarial e registral é,
de fato, custosa, mas o é justamente porque exige infraestrutura, tecnologia e
qualificação profissional compatíveis com o nível de segurança jurídica que
oferece.
Assim,
para os cartórios integrarem eventual reforma administrativa, isso deve ocorrer
apenas futuramente, de forma mais oportuna, após estudo inteligente, sistêmica
e embasado em análise prévia de impacto, voltada a corrigir distorções e
promover equilíbrio entre as serventias - e não a desestruturar um modelo que
há quase quinhentos anos garante eficiência, confiança e desjudicialização no
Brasil.
1 XI
- a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos
públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de
qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e
os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos
cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra
natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do
Supremo Tribunal Federal, aplicando-se como limite, nos Municípios, o subsídio
do Prefeito, e nos Estados e no Distrito Federal, o subsídio mensal do
Governador no âmbito do Poder Executivo, o subsídio dos Deputados Estaduais e
Distritais no âmbito do Poder Legislativo e o subsídio dos Desembargadores do
Tribunal de Justiça, limitado a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por
cento do subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal
Federal, no âmbito do Poder Judiciário, aplicável este limite aos membros do
Ministério Público, aos Procuradores e aos Defensores Públicos;
(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 41, 19.12.2003)
2
PEC. Disponível aqui. [Acesso em 04.11.2025].
3
Debates sobre a Reforma Administrativa. Disponível aqui. [Acesso em
04.11.2025].
4
FALCÃO, Joaquim. Quanto ganha um cartório? In ARPEN-SP, São Paulo, 03.11.2009.
Disponível aqui. [Acesso em 04.11.2025].
5
SILVA, Marcelo Lessa da. Reforma administrativa e os cartórios: Eficiência,
desoneração e governança pública. In Migalhas, s. l., 10.09.2025. Disponível
aqui. [Acesso em 04.11.2025].
6
ACESSORIA ANOREG BR. Crença de Cartórios milionários não resiste a dados:
déficit atinge quase 170 serventias no Paraná. In ANOREG-BR, s. l., 10.10.2025.
Disponível aqui. [Acesso em 04.11.2025].
7
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 22. ed. São Paulo:
Malheiros, 1997. p. 75.
8
Art. 28. Os notários e oficiais de registro gozam de independência no exercício
de suas atribuições, têm direito à percepção dos emolumentos integrais pelos
atos praticados na serventia e só perderão a delegação nas hipóteses previstas
em lei.
9 Há
um descompasso, inclusive, com o Tema 777 do STF.
10
KÜMPEL, Vitor Frederico; FERRARI, Carla Modina. Tratado Notarial e Registral.
2. ed. São Paulo: YK, 2022. vol. 3. p. 71-72.
11
Assessoria de Comunicação Anoreg/BR. Serviços oferecidos por cartórios são os
mais bem avaliados, aponta pesquisa Datafolha. In CNB, s. l., 16.01.2023.
Disponível aqui. [Acesso em 04.11.2025].
Pesquisa
disponível aqui. Pesquisa-imagem-dos-cartorios.pdf [Acesso em 04.11.2025].
Fonte:
Migalhas