A
era digital redefine as profissões: Não é o fim do saber, mas da exclusividade.
O notário surge como guardião da confiança humana na era da IA.
Há
algo de silencioso e profundo acontecendo no mundo do trabalho. Médicos,
professores, advogados, engenheiros, notários, jornalistas, todos partilham,
sem perceber, de uma mesma transformação: estão deixando de ser apenas
profissionais para se tornarem parte de sistemas inteligentes.
Durante
séculos, as profissões foram o modo como a sociedade organizou o conhecimento e
construiu confiança. Consultava-se o médico porque ele sabia, o advogado porque
interpretava, o professor porque ensinava, o tabelião porque conferia segurança
jurídica. Essas funções nasceram da escassez de informação: o especialista
existia porque poucos sabiam o que ele sabia.
Mas
esse tempo acabou. A era digital dissolveu o antigo monopólio do saber.
Hoje,
o diagnóstico médico começa num aplicativo; o parecer jurídico, num sistema de
IA; a aula, em uma plataforma global; o contrato, em um clique.
A
inteligência artificial não "rouba" profissões, ela muda o sentido de
ser profissional.
O
colapso do saber exclusivo. O advogado britânico Richard Susskind, em seu livro
O Futuro das Profissões, escreveu que vivemos a transição de uma
"sociedade baseada na impressão", aquela que dependia de livros,
universidades e ordens profissionais, para uma sociedade baseada na tecnologia,
em que o conhecimento circula livremente em redes, algoritmos e comunidades
digitais.
Isso
não significa o fim das profissões, mas o fim da exclusividade.
O
médico ainda é indispensável, mas o paciente chega ao consultório com exames
interpretados por sistemas de IA. O engenheiro continua essencial, mas o
projeto estrutural é traçado com auxílio de algoritmos. O advogado permanece
relevante, mas o cidadão já encontra respostas jurídicas automáticas antes de
contratar alguém.
O
poder do profissional já não está apenas em "saber", mas em saber
interpretar um mundo que também sabe. O novo valor da profissão não é deter o
conhecimento, e sim dar sentido ao conhecimento disponível.
O
caso das profissões jurídicas exige menos formalismo, mais solução.
O
campo jurídico talvez seja o exemplo mais emblemático dessa mudança.
Durante
séculos, acreditamos que justiça e processo eram sinônimos.
Hoje,
aprendemos que justiça é, antes de tudo, solução. E que nem toda solução
precisa passar por um juiz.
A
digitalização do Direito, tribunais eletrônicos, plataformas de mediação,
chatbots jurídicos, vem redesenhando a forma como as pessoas acessam direitos.
O
cidadão não quer "entrar com uma ação"; quer resolver o problema.
E é
nesse novo modelo que surge o protagonismo dos serviços extrajudiciais, como os
cartórios.
Enquanto
o mundo discute a substituição de profissionais por máquinas, o notariado
brasileiro mostra o caminho oposto: usar a tecnologia para ampliar a confiança,
não para eliminá-la.
O
tabelião, figura que durante séculos dependia do papel e da presença física,
hoje atua em ambiente 100% eletrônico. Graças a normas do CNJ, como o
provimento 100/20 e o provimento 149/23, escrituras, procurações, divórcios e
inventários podem ser feitos à distância, por videoconferência e assinatura
digital, com a mesma segurança jurídica.
Mas
o mais importante é que, mesmo no ambiente virtual, a fé pública permanece.
A
assinatura digital, o reconhecimento facial e os selos eletrônicos não
substituem o notário, apenas traduzem sua função para a linguagem tecnológica.
Se
antes o papel garantia a autenticidade, hoje é o código. Se antes a confiança
estava no carimbo, hoje está na criptografia. Porém, o valor humano que
sustenta ambos é o mesmo: a credibilidade institucional.
Temos
então o notário como curador da confiança algorítmica. Vivemos em uma era de
desinformação e manipulação digital. Identidades são falsificadas, contratos
são adulterados, imagens são criadas por inteligência artificial.
Nesse
cenário, o papel do notário se torna mais necessário do que nunca, não como
burocrata, mas como curador da verdade digital.
A fé
pública, em tempos de IA, é a última fronteira da confiança. É ela que garante
que o documento, a assinatura ou a declaração feita online correspondem a uma
vontade real. É ela que permite que o Estado funcione sem vigilância total e
que os cidadãos façam negócios sem desconfiança.
Quando
a tecnologia se torna o meio, o notariado se torna o guardião do humano dentro
da máquina.
O
futuro das profissões passa pela mudança de títulos a propósitos. Não é o seu
desaparecimento, mas a reinvenção. O que define um profissional não será mais o
diploma, mas o propósito, sua capacidade de garantir confiança, interpretar
complexidade e gerar valor humano em meio à automação.
As
profissões que sobreviverão serão aquelas que entenderem que o seu produto
final não é o serviço, mas a confiança social. E, nesse sentido, o notariado
brasileiro oferece uma lição ao mundo: é possível inovar sem perder a
legitimidade; é possível digitalizar sem desumanizar.
O
tabelião do futuro talvez não use caneta, nem precise de balcão.
Mas
continuará fazendo o mesmo que faz há séculos: dar forma jurídica à confiança.
Apenas
agora, em bytes.
Fonte:
Migalhas