Um alerta importante para quem busca
economizar no planejamento sucessório: uma estrutura complexa, conhecida como
“Sistema de 3 Células”, tem sido promovida como uma solução para reduzir a
carga tributária na transmissão de bens a herdeiros. No entanto, o que parece
um caminho para a economia pode se transformar em um pesadelo fiscal, com
riscos que superam em muito o valor de imposto que se busca economizar.
No último dia 31, a Receita Estadual do
Rio Grande do Sul (Sefaz-RS) lançou um programa de autorregularização de ITCD,
visando a coibir planejamentos sucessórios irregulares. Essa iniciativa, embora
específica para o estado, serve de alerta nacional para a atenção crescente dos
órgãos fiscais a essas manobras.
No portal da Sefaz-RS, consta que a
fiscalização é especificamente sobre o “Sistema de 3 células”, conforme se
extrai:
Ou seja, o Fisco do Rio Grande do Sul já
reconheceu a abusividade da estrutura e está intimando os contribuintes para
realizarem uma autorregularização, pagando o imposto devido (ITCD) de forma
correta.
O não pagamento (autorregularização) pode
acarretar em consequências muito mais gravosas para as famílias, como, por
exemplo, multa de 75%, além de correção e juros de mora.
Entendendo a mecânica fraudulenta
O “Sistema de 3 Células” é uma engenhosa,
mas perigosa, estrutura que busca reduzir a base de cálculo do Imposto sobre
Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCD). A mecânica é complexa, mas vamos
simplificá-la para expor os riscos:
1. Criação
da “Holding Célula Cofre” (HCC): Os pais (patriarcas) criam uma primeira
empresa (geralmente LTDA) e transferem seus bens (imóveis, outras
participações, etc.) para ela, usando o valor que consta na Declaração de
Imposto de Renda (valor contábil ou histórico). Exemplo: Patrimônio de R$ 1
milhão é integralizado na HCC. (Vamos considerar ainda que o valor de mercado
deste patrimônio seja de R$ 5 milhões).
2. Criação
da “Holding Célula Veículo” (HCV): Em seguida, criam uma segunda empresa
(HCV), também LTDA. Os pais transferem 100% das cotas da HCC para a HCV. No
entanto, essa transferência é feita por um valor muito menor que o valor real
da HCC. Exemplo: As cotas da HCC (que possuem o valor contábil de R$
1.000.000,00) são integralizadas na HCV por apenas R$ 100.000,00. A enorme
diferença (R$ 900.000,00) é registrada na contabilidade da HCV como ágio na
subscrição de capital.
3. Criação
da “Holding Célula Destino” (HCD): Cria-se uma terceira empresa (HCD),
LTDA, com capital social baixo, integralizado em dinheiro pelos pais. Exemplo:
Capital de R$ 100.000,00.
4. Doação: Os
pais doam aos herdeiros (geralmente a nua-propriedade) das cotas da HCD, que
tem um valor patrimonial baixo (R$ 100.000,00 no exemplo). O ITCD incidiria
sobre este valor reduzido.
5. Aquisição
Indireta: Posteriormente, a HCD (agora dos herdeiros, talvez com os pais
como usufrutuários) adquire as cotas da HCV. Como a HCV detém a HCC, que por
sua vez detém os bens originais, a HCD passa a controlar indiretamente todo o
patrimônio, mas o imposto (ITCD) inicial teria sido calculado sobre um valor
artificialmente baixo.
A vantagem aparente dessa estrutura é a
redução drástica da base de cálculo do ITCD, que incidiria sobre R$ 100.000,00
(valor da HCD doada) em vez de R$ 5.000.000,00 (considerando a incidência sobre
o valor de mercado dos bens integralizados na HCC). Considerando alíquotas de
ITCD entre 4% e 8%, a economia pareceria significativa.
A armadilha está em duas frentes: a
tributação do ágio e a desconsideração da estrutura por falta de propósito
negocial nos termos do artigo 116, Parágrafo único: “A autoridade
administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a
finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza
dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os
procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária. (Incluído pela Lcp nº
104, de 2001).”
O perigoso ágio interno e seus custos
ocultos
A grande falha desta estrutura reside no
ágio interno gerado na HCV. A legislação tributária federal, especialmente após
a Lei nº 12.973/2014, é extremamente restritiva e proíbe a dedução fiscal de
ágio criado em operações entre partes relacionadas.
O ágio gerado nessa operação não é um
ganho real, mas um valor artificialmente criado entre empresas do mesmo grupo
familiar. O Fisco pode interpretá-lo como um ganho de capital tributável, com
uma alíquota que pode chegar a 34% (IRPJ e CSLL) sobre o valor do ágio, caso a
empresa seja optante pelo Lucro Presumido.
Isto, pois, todo acréscimo patrimonial
deve ser tributado, salvo se a lei disser que não será tributado. E hoje, essa
possibilidade (não tributação do ágio) só é prevista legalmente para uma
sociedade anônima pelo lucro real (artigo 520 do RIR/18).
Inclusive, existe em tramitação o Projeto
de Lei 2081/19 que tem como principal objetivo alterar a legislação do Imposto
de Renda para estender às sociedades limitadas (LTDA) um benefício tributário
que já é aplicável às empresas de capital aberto (sociedades anônimas).
Reforçando este entendimento, temos
Solução de Consulta Cosit nº 134, de 10 de maio de 2024:
Assunto: Imposto sobre a Renda de Pessoa
Jurídica – IRPJ LUCRO REAL. SOCIEDADE POR AÇÕES. AÇÕES EM TESOURARIA.
DISPOSITIVO DO RIR/18. NÃO APLICABILIDADE À SOCIEDADE LIMITADA. Os comandos
normativos contidos no inciso III e no parágrafo único do art. 520 do RIR/18
são direcionados às pessoas jurídicas constituídas sob a forma de sociedades
por ações, não se aplicando às sociedades limitadas. LUCRO REAL. SOCIEDADE
LIMITADA. PERDAS NA AQUISIÇÃO E POSTERIOR CANCELAMENTO DE QUOTAS EM TESOURARIA.
INDEDUTIBILIDADE. A perda registrada na aquisição e posterior cancelamento de
quotas societárias em tesouraria, por sociedade limitada, é indedutível para
fins de determinação do Lucro Real. Dispositivos Legais: Constituição Federal
de 1988, art. 150, § 6º; Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976, art. 2º; Lei
nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, arts. 1º e 3º; Decreto nº 9.580, de 22 de
novembro de 2018, RIR/18, art. 520, III e parágrafo único, do Anexo.
Ou seja, no cenário atual uma empresa
limitada pelo lucro presumido ao ter a formação de reserva de capital (ágio),
será tributada como ganho de capital pelo acréscimo patrimonial. Dizer o
contrário é negar o óbvio e ignorar a legislação vigente.
Em nosso exemplo prático, um ágio de R$
900 mil poderia gerar um imposto de R$ 306 mil, um custo que anula e supera
qualquer “economia” inicial.
Desconsideração fiscal do planejamento
abusivo e sem propósito negocial
Este é o ponto central da fiscalização
iniciada pela Sefaz do Rio Grande do Sul.
A estrutura das “3 Células” foi
questionada pela fiscalização sob a ótica da falta de propósito negocial e do
planejamento tributário abusivo.
O artigo 116, parágrafo único, do Código
Tributário Nacional (CTN), permite ao Fisco desconsiderar atos ou negócios
feitos com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do imposto.
E foi exatamente isso que aconteceu no
caso em debate, o Fisco (Sefaz-RS) entendeu que o único ou principal objetivo
da complexa estrutura foi reduzir artificialmente a base do ITCD, sem um
propósito de negócio real, e, portanto, um planejamento abusivo.
O entendimento do fisco encontra respaldo
não só no Código Tributário Nacional, como na jurisprudência pacífica do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o qual vem se posicionando de forma
reiterada:
Agravo de Instrumento Nº
5209254-15.2023.8.21.7000/RS TIPO DE AÇÃO: ITCD – Imposto de Transmissão Causa
Mortis RELATORA: Desembargadora LAURA LOUZADA JACCOTTET AGRAVANTE: MARA ROSANI
SILVEIRA AYRES AGRAVANTE: NERY MACHADO SILVEIRA AGRAVADO: ESTADO DO RIO GRANDE
DO SUL Data de Julgamento: 29-11-2023 AUTO DE LANÇAMENTO. DÉBITO FISCAL. ITCD.
HOLDING PATRIMONIAL. AGROPECUÁRIAS. DOAÇÃO DE QUOTAS DE SOCIEDADES
EMPRESARIAIS. SIMULAÇÃO DE VENDA POR PREÇO VIL ENTRE FAMILIARES – PAI E FILHOS.
Apelação/Remessa Necessária Nº
5001481-50.2021.8.21.0022/RS TIPO DE AÇÃO: ITCD – Imposto de Transmissão Causa
Mortis RELATOR: Desembargador CARLOS ROBERTO LOFEGO CANIBAL Data de Julgamento:
28-06-2023 ITCMD. COMPETÊNCIA DO ESTADO PARA A EXIGÊNCIA. REGULARIDADE DA
DESCONSIDERAÇÃO DA CESSÃO ONEROSA. CARACTERIZAÇÃO DE DOAÇÃO DE QUOTAS SOCIAIS.
AJUSTE DA BASE DE CÁLCULO. MULTA COM EFEITO CONFISCATÓRIO.
APELAÇÃO CÍVEL. TRIBUTÁRIO.
Apelação/Remessa Necessária Nº 5125592-72.2021.8.21.0001/RS TIPO DE AÇÃO: ITCD
– Imposto de Transmissão Causa Mortis RELATORA: Desembargadora MARILENE
BONZANINI APELANTE: ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL (RÉU) APELADO: AUGUSTO FEDERHEN
(AUTOR) APELADO: EMILIA FEDERHEN LEIDENS (AUTOR) APELADO: MONICA FEDERHEN
(AUTOR) APELADO: VALDIR JOSÉ FEDERHEN (AUTOR) Data de Julgamento: 06-04-2023
AÇÃO ANULATÓRIA. INCIDÊNCIA DO ITCD SOBRE COMPRA E VENDA, ENTRE PAI E FILHOS,
DE QUOTAS DE PARTICIPAÇÃO DE EMPRESA. SIMULAÇÃO RECONHECIDA. FATO GERADOR. – O
Sistema Constitucional Tributário Brasileiro Não Proíbe O Planejamento
Tributário, Isto É, A Redução Da Carga Tributária Pelo Contribuinte, Que
Realiza Suas Atividades De Forma Menos Onerosa, E, Assim, Deixa De Pagar
Tributos “Quando Não Configurado Fato Gerador Cuja Ocorrência Tenha Sido
Licitamente Evitada” (ADI 2446, Relª: CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, Julgado Em
11/04/2022). – Todavia, Constatada A Configuração Do Fato Gerador Do ITCD,
Constituído Na Transferência De Cotas De Pessoa Jurídica A Título Gratuito, Uma
Vez Que, A Rigor, Frente Ao Valor Irrisório Atribuído À Operação, Tratava-Se De
Doação Pura Travestida De Cessão A Título Oneroso, É Possível Constatar A
Tentativa De Burlar A Incidência Do Imposto Referido, Não Havendo, Portanto,
Qualquer Nulidade No Auto De Lançamento Em Questão.
Portanto, nos resta demonstrado e claro
que a tendência de quem não realizar a autorregularização será amargar
prejuízos ainda maiores com as penalidades que serão impostas pelo fisco.
Custo-benefício devastadora
Vamos colocar isso em números. No nosso
exemplo, para não pagar R$ 400 mil de ITCD (considerando 8% sobre R$ 5.000.000
de patrimônio), a família que adere a essa estrutura arrisca:
·
O pagamento do ITCD integral, mas agora
com multas, correção e juros, que podem, no mínimo, dobrar o valor.
·
A tributação do ágio como ganho de
capital, que no nosso exemplo representaria R$ 306 mil.
A conta final facilmente ultrapassa R$ 1,2
milhão, um prejuízo três vezes maior do que o imposto que a família tentou
evitar.
A pergunta crucial para qualquer família
é: vale a pena o risco? O risco de pagar 34% de imposto sobre o ágio, somado ao
risco de ter toda a estrutura desconsiderada, justifica a aparente economia
imediata no ITCD? A lição é clara: a busca por atalhos fiscais pode levar a um
caminho sem volta, onde a ilusão de economia é rapidamente substituída pela
amarga realidade de prejuízos gigantescos.
Fonte: Conjur