A
inteligência artificial já está entre nós, registradores, notários, juízes,
promotores, advogados, alunos e professores, pais e filhos, pets e bebês
reborn. A IA vai se insinuando na diuturnidade das atividades notariais e
registrais, enraizando-se em processos e rotinas internas e já nos perguntamos:
como pudemos viver sem ela até os dias de hoje?
O
desafio posto aos cartórios é o seguinte: como utilizar a IA como ferramenta
útil, sem que nos convertamos em meros pacientes no processo? Como evitar que
progressivamente degrademos nossas competências intelectivas, analíticas,
perceptivas, intuitivas, criativas, pelo fenômeno de deskilling (perda de
habilidades ou competências) pelo uso crescente de novas tecnologias de IA
generativa? Como evitar a dependência excessiva de respostas rápidas e fáceis a
problemas complexos? Abandonaremos o processo reflexivo satisfazendo-nos
integralmente com as respostas dadas pela máquina e descartando as boas
perguntas?
Não
pretendo dar respostas; antes, penso que é hora de formular boas perguntas. Ou
provocações. Elas nos mobilizam para a ação.
Pacientes
ou agentes? - that's the question!
A
IA "agêntica" substituirá o ser humano nas tarefas ordinárias das
serventias? Transferimos a agentes (agentic IA) a realização de rotinas cada
vez mais especializadas e complexas, acarretando, por uma estranha
descompensação - a perda progressiva de autonomia e independência pessoais. De
igual modo, à medida que nos contentamos unicamente com as respostas,
abandonando o afanoso iter processual e esquecendo-nos das perguntas, acabamos
por perder a própria memória.
Nos
encontros de registradores e notários proliferam estandes de prestadores de
serviços especializados nessa área. O impacto das novas tecnologias nas
serventias se dá feito tempestade de areia no deserto. O uso de blockchain virá
em substituição aos tradicionais registros imobiliários? IA aplicada à análise
e qualificação registral de títulos já é realidade em alguns cartórios, bem
como a extração de dados e lavratura "inteligente" de atos registrais
e notariais. A máquina atribui a identidade digital por biometria e cruzamento
de dados hauridos do grande lago de big data... Nasce uma profusão de
aplicativos especializados na atuação e processamento de tarefas confiadas a
agentes autônomos e inteligentes.
A
IA "agêntica" substituirá o ser humano nas tarefas ordinárias das
serventias?
A
diminuição de tempo e o estreitamento espacial, provocados pelas infovias,
promove o aumento da eficiência sistêmica, transformando o ecossistema dos
cartórios. Afinal, the medium is the message.
Entretanto,
tudo isso se faz a que custo humano? A aceleração digital nos desumanizará? O
estado de passividade (pati) nos furtará progressivamente o agir humano
(agere)?
Novas
tecnologias - novo ser humano?
O
tema do impacto das novas tecnologias na sociedade humana é recorrente na
literatura distópica do século XX. Fiquemos num só exemplo, perturbadoramente
atual: O Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley.
O
pano de fundo da ficção huxleyana é a inovação tecnológica que daria impulso,
racionalidade e eficiência a processos industriais (no romance, fordistas),
promovendo o consumo desenfreado e a concentração de poder nas mãos de grandes
corporações que se confundem com o Estado totalitário mundial (globalismo, se
preferir). Tudo é feito à custa da alienação progressiva do ser humano, que se
vê entorpecido pelo consumo, lazer, sexo e por artefatos tecnológicos.
O
hipermaterialismo e a saudades do mistério
Engenharia
genética, eugenia, condicionamento "neopavloviano", hipnopedia
("sessenta e duas mil repetições fazem uma verdade"), supressão da
curiosidade inata dos seres humanos, substituição do valor e sentido das
palavras (ressignificação, se preferir) e o Soma, nome tomado das tradições
védicas, que, na distopia huxleyana, já não conduz à revelação, mas à anestesia
perfeita, abolindo o sofrimento sem abrir as "portas da
percepção".
"Meio
grama para uma folga de meio dia, um grama para um fim de semana, dois gramas
para uma viagem ao suntuoso Oriente, três para uma sombria eternidade na
Lua", dirá Huxley. "Bebo ao meu aniquilamento"... (Admirável
Mundo Novo)
O
mundo hedonista, embalado pelos prazeres e confortos materiais, consagraria o
direito humano fundamental à felicidade, livrando o homem de suas angústias
existenciais, suprimindo, de modo eficiente e eficaz - e sem efeitos colaterais
-, a profunda e sentida saudade do Transcendente.
A
liberdade sexual é fator coadjuvante de diluição e dispersão de tensões,
agravando a alienação, a desagregação da psiquê, a fragilização, a
infantilização. As sessões orgiásticas são embaladas por estimulação sexual. Na
assombrosa passagem do romance em que evoca metaforicamente o ritual do
sacramento, os doze partícipes, em comunhão, são conduzidos pela sacerdotisa,
Morgana Rothschild (ah... fina ironia do nosso autor!) num transe hipnótico
coletivo. A evocação de unidade e comunhão, provocada pelo Soma e pela
estimulação sensorial, provocam o aniquilamento do indivíduo, mergulhando sua
personalidade na uniformidade comportamental, reforçando o sentimento de
pertencimento hipermaterialista e coletivista do Estado Mundial.
"Orgia-folia,
Ford e Alegria,
Beija
aqueles que amas e faz deles um só.
Rapazes
e raparigas em paz se unirão!
Orgia-folia
dá-nos a libertação"
(id.
Ib p. 96).
Racionalidade
e uniformismo - o novo capitalismo
Huxley
sabe que uniformidade e liberdade são incompatíveis.
"Esses
milhões de pessoas anormalmente normais [...] ainda nutrem 'a ilusão de
individualidade', mas na verdade foram em grande medida desindividualizados.
Sua conformidade está se expandindo para algo como uniformidade. Mas
'uniformidade e liberdade são incompatíveis. Uniformidade e saúde mental também
são incompatíveis.'" (Retorno ao Admirável Mundo Novo, p. 28).
"O
todo social [...]. É apenas uma organização, uma peça da máquina social. [...]
Dar às organizações precedência sobre as pessoas é subordinar os fins aos
meios"; (Idem, ibidem, p. 34).
Ao
deitarmos um olhar atento às inovações tecnológicas que estão em curso em nossa
sociedade, veremos que não estamos muito distantes de experimentar os
sentifilmes (feelies) da obra huxleyana, dos jogos eletrônicos, da música
sintética, da recorrência de posts e reels que se sucedem em ambientes
saturados de estímulos visuais e sonoros, projetados diretamente sobre retinas
desarmadas, tudo de molde a impedir o silêncio reflexivo, a meditação, a
contemplação, o jazimento de intuições...
No
futuro não se poderá suscitar dúvidas existenciais!
No
Retorno ao Admirável Mundo Novo, do mesmo Huxley, alude-se a uma cultura
midiatizada que vicia as massas pela dopamina provocada pelas media digitais.
Tigrinhos, bets, caça-níqueis viciosos, pornografia, jogos sexuais infantis,
sucessão estimulativa de imagens que cria dependência psicológica e fragilidade
social. Tudo isso nos remete ao delírio futurista do nosso romancista
Distopia
ou realidade?
As
novas tecnologias descritas no livro parecem vaticinar que o futuro nos
revelaria um estranho descolamento do sistema nervoso para além do corpo
físico, avançando sobre os domínios da hiper-realidade. Achegando-nos, suave e
progressivamente, à noosfera, esfera do pensamento (ou do conhecimento, se
preferir) que empolgou autores como McLuhan (e sua "aldeia global"
midiática), Teilhard de Chardin (e seu Ponto Ômega). Ingressamos nos vestíbulos
de um templo que representa uma nova fase evolutiva (disruptiva, se preferir),
com o predomínio de uma razão cientificista, tecnocrática, hipermaterialista,
de cariz positivista. Um outro nome para isto tudo é transumanismo, se
preferir.
Huxley
fala de homens do futuro. Assusta-nos verificar que na plataformização dos
serviços o passado se dissolve em camadas profundas do cyberespaço?
Parafraseando um conhecido político, o que será esta "nuvem"
abscôndita que se acha no lugar-nenhum de todos os sites? O tempo e o espaço
colapsam na instantaneidade das transações eletrônicas. O apagamento do passado
é induzido - já ninguém reconhece seus pais, mães, e os seres humanos
divorciam-se das tradições que os ligavam à família, à frátria, à pátria. Dos
escombros da tradição nasceu um estado onipresente, monolítico, um demiurgo
sedutor e simbolicamente violento que embala a narrativa.
A
humanização da tecnologia - a terceira via?
Entretanto,
no curso da trama, o autor nos revelará um "outro mundo", contraposto
à sociedade hipertecnológica e condicionada do Estado Mundial. No final do
romance, Huxley nos apresentará John, um ser humano visceralmente dividido pela
origem e pela realidade vivida na Reserva Selvagem. Ele coloca em seus lábios
passagens de Shakespeare que expressam a complexidade da experiência humana:
amor, dor, piedade, compaixão, morte, ciúme, ambição, transcendência, ideias
que ressoam como reminiscências de uma idade áurea perdida (humanidade perdida,
se preferir). Com isso, Huxley busca contrastar a linguagem mecânica, redutora
e repetitiva do Estado Mundial, com a prosa abonadora do dramaturgo
bardo:
Oh,
maravilha! Quantas criaturas belas existem aqui!
Como
é bela a humanidade! Ó admirável mundo novo,
Que
tem pessoas assim.
(Miranda,
Ato 5, Cena 1)
As
profecias foram lançadas em 1932 e, já na década de 50, revelariam-se
assustadoramente verossímeis para o próprio autor. O "pesadelo da
organização total [...] espera por nós logo ali na esquina" dirá no
Retorno ao Admirável Mundo Novo. Huxley revisitaria o cenário por ele mesmo
antevisto - o "mundo civilizado" em contraste com o "mundo
selvagem" (representado pela Reserva onde vive o Selvagem, John) - uma
escolha binária entre totalitarismo tecnocientífico e primitivismo tribal:
"Se
eu tivesse de escrever o livro novamente, ofereceria ao Selvagem a
possibilidade de fugir - não para o mundo selvagem, mas para uma sociedade
organizada, descentralizada e economicamente cooperativa, habitada por pessoas
que não apenas aceitassem a ciência, mas também tivessem a mais elevada
concepção de objetivos humanos.
(...)
Uma
utopia válida deveria oferecer opções além da servidão condicionada ou da
selvageria regressiva. A ausência dessa alternativa torna o mundo novo mais
profético, mas menos útil." (idem, ibidem).
Mais
profético? Menos útil? Deixo ao caríssimo leitor as cogitações que o texto
incomodamente suscita.
Habemus
machinam.
A
IA pode representar de fato um admirável mundo novo. Estaremos fadados à
servidão voluntária de uma sociedade hipertecnocrática ou seremos condenados ao
exílio numa reserva "selvagem", regressiva, tecnofóbica. Haverá uma
outra via? A concepção de uma terceira via seria possível?
Huxley
acena que sim, e sugere temas como a descentralização, a constituição de
pequenas greis, sussurra que o manto da espiritualidade deve cobrir e soldar os
laços da compaixão e solidariedade humanas, subordinando a ciência à ética.
Aponta para o caminho interior - a via pedregosa do autoconhecimento. Enfim,
propõe o retorno ao real tangível, sem a intermediação das diáfanas lâminas da
hiper-realidade que nos remetem aos domínios pavorosos dos espelhos borgianos.
Uma utopia válida, dirá ele, se posta além da servidão condicionada ou da
selvageria regressiva.
Enfim,
leitor...
A
IA já está entre nós. Adentramos os átrios de um admirável mundo novo. Que
maravilhas ela há de operar? Que tesouros se acham no fim deste sedutor
arco-íris?
Calma,
muita calma, nesta hora. A distopia foi concebida por Huxley na década de 30 do
século passado. Como ele poderia imaginar que tudo isto suscitaria as nótulas
insones deste velho escriba tradicionalista quando pensa que as facilidades e a
sedução das novas tecnologias podem nos levar para o interior de um labirinto?
NE:
As obras de Aldous Huxley, citadas no texto, acham-se em domínio público e
podem ser acessadas facilmente nas bibliotecas digitais da Internet.
Fonte: Migalhas