Embora a reforma tributária tenha sido
focada para uma reestruturação do sistema tributário com relação aos tributos
sobre o consumo, com a instituição da CBS, IBS e do IS, o alcance reformista
foi maior, reformulando estruturas jurídicas tributárias de serventia para todo
o sistema tributário nacional, além de trazer inovações normativas com relação
a outros tributos.
Uma dessas alterações que extrapolam a
reformulação dos tributos sobre o consumo foi direcionada ao Imposto sobre
Transmissão Causa Motis e Doação de Quaisquer Bens e Direitos (ITCMD) previsto
no artigo 155, I, da CF, imposto incidente sobre o patrimônio e de competência
estadual. O PLP nº 108/2024, que será transformado em lei complementar, dedicou
o Livro II para dispor sobre a matéria nos artigos 159 a 186, inserindo
importantes alterações no regramento deste imposto, entre as quais a imposição
da progressividade [1] das
alíquotas em razão do valor transferido, regra esta já constitucionalizada pela
EC nº 132/2023 (artigo 155, § 1º, VI da CF).
Nas reflexões deste artigo, faz-se um
recorte para a análise da tributação do ITCMD nas operações de transmissão do
direito ao usufruto, tema sempre polêmico quando se investiga a
materialidade da incidência deste imposto.
Antes de seguir na análise do tema
proposto, necessário lembrar dos elementos essenciais da matriz de incidência
deste tributo. O evento jurídico que materializa fato gerador do ITCMD é
a transmissão dos bens ou direitos de uma pessoa para outra. É também
da essência da incidência deste imposto que esta transmissão ocorra de forma
não onerosa, ou por sucessão na herança, ou por doação. O terceiro
elemento a permitir a exigência do imposto é a possibilidade de se
atribuir valor econômico ao bem ou ao direito transmitido, que
servirá de parâmetro para a determinação da base de cálculo.
Com suporte nestas premissas de incidência
vamos examinar a estrutura jurídica do usufruto como objetivo de identificar a
sua habilidade para configurar o fato gerador deste imposto.
O usufruto é um direito real passível de
tributação pelo ITCMD, visto que o imposto incide sobre quaisquer bens
e direitos transmitidos.
Instituição do usufruto
Mas a questão a ser examinada em cada caso
é a ocorrência efetiva da transmissão desse direito, requisito
indispensável para o aperfeiçoamento do fato gerador.
Neste contexto de análise visualizamos
duas estruturas jurídicas de instituição do usufruto: o primeiro é decorrente
de sua instituição a favor de uma terceira pessoa, que não é o nu-proprietário
da transmissão dos bens gravados pelo usufruto. Melhor explicando: o pai doa o
bem para o filho, mas institui o usufruto para uma terceira pessoa. Nesta
estruturação jurídica há duas transmissões: uma pela doação do bem ao
nu-proprietário e outra pela instituição do usufruto, gravando o ônus do
direito real sobre o bem. Portanto, o ITCMD incidirá sobre a transmissão do bem
e do usufruto. Esta forma de outorga de usufruto não é tão usual nas doações,
mas tem aplicação em casos específicos.
Se há incidência sobre
a instituição deste usufruto, é natural admitir também a incidência
sobre a sua extinção, quando ocorre a transmissão do direito para o
nu-proprietário, que passa a ter a propriedade plena do bem, sem o ônus do
direito real.
Mas queremos aqui enfocar uma segunda
forma de instituição do usufruto, a mais usual no mundo prático, que é o ponto
de maior importância relacionado à sua tributação, e que ao nosso ver, não foi
solucionada pela reforma tributária. Estamos nos referindo ao usufruto que é
instituído sem transmissão do direito, mas por meio
da preservação deste direito no domínio do doador. É o que ocorre
quando o doador transfere o bem para o donatário, mas preserva para ele o
usufruto, transmitindo apenas a nu-propriedade.
Note que um dos elementos essenciais do
fato gerador do ITCMD é a transmissão do bem ou direito. Quando se
preserva o usufruto não há qualquer transmissão deste direito. O direito ao
usufruto já era do doador e com ele permanece, sem nenhum movimento jurídico
que possa caracterizar uma transmissão. Portanto, no nosso entender, nesta
estruturação do usufruto, em que este direito não é instituído para alguém
através de uma efetiva transmissão, mas é apenas reservado para o doador, falta
um dos elementos basilares para a configuração do fato gerador do imposto.
Recorrendo ao Direito Civil, a propriedade
se constitui no direito legal de usar, gozar, dispor e reivindicar um bem ou
objeto. A propriedade plena contém o usufruto. Ao se fazer a doação com a
reserva do usufruto, somente ocorre a transmissão do bem doado, não do direito
ao usufruto, que permanece inalterado sob o domínio do doador. Não há que falar
em incidência do ITCMD na ausência de transmissão do usufruto. Neste caso, a
instituição é um ato de mera reserva.
Não obstante essa clareza interpretativa
da norma definidora da hipótese de incidência deste imposto, alguns estados
preveem na sua legislação ordinária a exigência do ITCMD, tanto na instituição
como na extinção do usufruto, sem fazer a distinção que aqui sugerimos.
Premissa equivocada
E qual é o avanço da reforma tributária
com relação a este ponto específico da tributação do ITCMD?
A única referência feita é a declaração da
não incidência do ITCMD na extinção do usufruto, nos termos do artigo 163, do
PLP nº 108/2024, ainda não transformada em lei complementar no fechamento deste
artigo.
“Art. 163. O ITCMD não incide na
extinção de usufruto ou de qualquer outro direito real que resulte na
consolidação da propriedade plena sob titularidade do instituidor do direito.”
A rigor, não devia ser necessário a lei
complementar tratar deste tema; a questão poderia ser resolvida com uma boa
interpretação, aplicando a incidência somente nos casos em que a instituição e
a extinção do usufruto resultassem em transmissão deste direito.
Todavia, o PLP nº 108/2024, ao prever a
não incidência somente na extinção do usufruto, sem nenhuma distinção, não
levando em consideração a necessidade de uma transmissão deste direito, revela
um comando que permite presumir a incidência do ITCMD em todas as formas de
instituição do usufruto.
A não incidência somente sobre a extinção
desse direito de uso parte de uma premissa equivocada de que toda a instituição
seria tributada. A nova legislação da reforma tributária, na verdade, estará
legitimando a cobrança do ITCMD sobre todas as formas de instituição do
usufruto, violando frontalmente a Constituição que condiciona a hipótese de
incidência à efetiva transmissão do direito.
A reforma tributária ainda está em
construção, com o debate em andamento sobre as matérias que serão reguladas
pelas inúmeras leis complementares que comporão a estrutura normativa do novo
sistema tributário.
Neste momento, o PLP nº 108/2024 está em
discussão junto à sociedade, com envolvimento das autoridades tributárias
competentes e juristas, para que se promovam as adequações necessárias para que
a projeto reformista atinja aos seus objetivos. Esperamos que o ponto aqui
levantado mereça a atenção dos analistas para a devida correção e não permitir
a cobrança do ITCMD sobre eventos jurídicos não previstos constitucionalmente
como fato gerador deste imposto.
Fonte: Conjur