O
anteprojeto de atualização
do Código Civil prevê
que imóveis de alto padrão ou de luxo, mesmo que sejam bens de família, possam
ser penhorados para o pagamento de dívidas – respeitando-se o limite de até 50%
do seu valor de mercado. Atualmente, o entendimento do Superior Tribunal de
Justiça (STJ) é o de que imóveis considerados como bens de família,
independentemente de seu valor, não podem ser penhorados. Por isso, a mudança
que prevê a possibilidade de penhora de “casa de morada de alto padrão” –
apresentada ao Senado Federal – tem potencial para impactar o planejamento
sucessório.
Juliana
César Farah e Isabella Rodrigues Souto Amaral, sócia e associada do Coimbra,
Chaves & Batista Advogados, consideram que, se o imóvel for considerado de
alto valor e sujeito à penhora parcial, os herdeiros podem enfrentar
dificuldades para manter o patrimônio dentro da família, especialmente quando
tiverem liquidez limitada. “Nesse contexto, torna-se essencial a adaptação de
estratégias de organização patrimonial, tais como a criação de holdings
familiares, doações com reserva de usufruto e reorganização de bens.”
O
anteprojeto de atualização do Código Civil permite a penhora parcial – de 50%
do imóvel de alto padrão – ainda que ele esteja sob titularidade de pessoa
física. “Nesse cenário, a integralização de bens de família em holdings poderá
representar uma alternativa de proteção ao patrimônio do devedor, o que altera
a lógica observada na elaboração do planejamento”, afirmam Flávia Marques e
Isabelle Oliveira, associadas do Freitas Ferraz Advogados.
“Em
outras palavras, é possível que planejamentos sucessórios já realizados tenham
de ser revistos, considerando que a proteção ao bem de família sob titularidade
da pessoa física não será mais integral e absoluta. Paralelamente,
planejamentos sucessórios futuros deverão ser elaborados sob uma nova ótica,
tendo em mente que eventual integralização de bens de família poderá ser uma
alternativa de interesse”, consideram Marques e Oliveira.
Atualmente,
são eventuais os casos em que a impenhorabilidade do bem de família foi
desconsiderada. As advogadas do Coimbra, Chaves & Batista explicam que são
raros os julgados do Tribunal de Justiça de São Paulo em que foi relativizada a
regra geral de que não é possível penhorar imóveis que são bens de família. “As
hipóteses excepcionais que autorizam a penhora do bem de família são limitadas,
abrangendo apenas as dívidas decorrentes de tributos ou encargos do próprio
imóvel, financiamentos destinados à aquisição do imóvel, pensão alimentícia,
dívidas trabalhistas, execução de fiança locatícia, indenizações por atos
ilícitos praticados pelo proprietário, financiamentos para construção ou
reforma, e imóveis dados como garantia em contratos de hipoteca ou alienação
fiduciária.”
Lacuna
na definição do que é alto padrão
Farah
e Amaral consideram que a alteração referente à penhora do bem de família de
alto valor no Código Civil carece da definição clara sobre o que pode ser
considerado um imóvel de alto padrão ou luxo. Para as advogadas do Coimbra,
Chaves & Batista, a lacuna pode gerar incerteza jurídica, resultando em
decisões contraditórias e dificultando a aplicação uniforme da legislação. O
ideal, consideram, seria que houvesse a definição de critérios objetivos para
criar um ambiente jurídico mais seguro.
As
advogadas do Freitas Ferraz têm a mesma avaliação: “A redação sugerida, da
forma como foi desenhada, apesar de mitigar diversas controvérsias existentes
atualmente, ainda carecerá do debate doutrinário e jurisprudencial, já que não
há definição do que seria a ‘casa de morada de alto padrão’. Tal indeterminação
conceitual, ainda que proposital, abrirá margem para interpretações subjetivas,
o que demandará esforço por parte dos operadores do Direito para resguardar os
princípios constitucionais da equidade e da isonomia”.
As
advogadas lembram ainda que o anteprojeto revoga integralmente o título
reservado ao bem de família voluntário – um dos tipos de bem de família, que
depende de registro em cartório (artigos 1.711 a 1.722 do Código Civil e no
artigo 833, I, do Código de Processo Civil). “É, sem dúvidas, uma alteração
bastante significativa, que muda a forma como está estruturado o instituto do
bem de família.”
Credores
x devedores
Marques
e Oliveira consideram que a definição sobre bem de família de alto valor tem o
potencial de impactar significativamente tanto devedores quanto credores com
patrimônios de alto padrão que estejam envolvidos em disputas judiciais. Como a
penhora de bens que anteriormente eram tidos como impenhoráveis passa a ser
admitida dentro de limites, aumenta a possibilidade de satisfação do crédito,
beneficiando credores.
As
advogadas do Freitas Ferraz afirmam que poucas questões geram tanta frustração
para operadores do direito quanto a falta de efetividade da jurisdição estatal,
especialmente na fase de execução judicial. “É desolador: o credor, após vencer
um processo longo e desgastante, vê o direito reconhecido no papel, mas esbarra
na dura realidade de não conseguir recebê-lo de fato.” Isso porque, mesmo
quando os bens do devedor que podem ser usados para quitar a dívida podem ser
localizados, as normas de impenhorabilidade podem impedir o pagamento da
dívida.
Aí
entra a questão do bem de família. “Trata-se de um aparente conflito entre dois
princípios fundamentais: a dignidade humana, que implica a proteção de um
mínimo necessário à subsistência do devedor e de seu núcleo familiar, e a
efetividade da prestação jurisdicional, que busca garantir satisfazer os
direitos do credor.” As advogadas lembram que persiste o argumento de que a
impenhorabilidade do bem de família independe de seu valor econômico,
justificando-se pela função essencial de garantir a manutenção da família e
pela inexistência de previsão legal que delimite o que é o mínimo necessário
para tanto.[1]
Na
entrevista abaixo, as advogadas do Freitas Ferraz e do Coimbra, Chaves &
Batista explicam o conceito de bem de família e o que prevê o anteprojeto de atualização
do Código Civil.
–
Atualmente, quais imóveis podem ser considerados bem de família e como se dá
essa definição? É possível, por exemplo, que mais de um imóvel seja considerado
bem de família?
Juliana
César Farah e Isabella Rodrigues Souto Amaral: Em nosso
ordenamento jurídico, o conceito de bem de família abrange tanto imóveis
residenciais, urbanos ou rurais, quanto aqueles em fase de construção. Essa
classificação pode ocorrer de forma automática, nos termos da Lei n. 8.009/1990, ou voluntária,
conforme disciplinado nos artigos 1.711 a 1.722 do Código Civil.
A
modalidade automática dispensa a realização de ato jurídico e decorre
diretamente da legislação, com o propósito de resguardar a dignidade da
entidade familiar, assegurando a proteção do imóvel destinado à moradia.
Já a
modalidade voluntária, que decorre da livre manifestação de vontade do
proprietário por meio de escritura pública, e desde que o valor do imóvel não
ultrapasse um terço do patrimônio líquido no momento da afetação, tem como
principal objetivo proteger o patrimônio do proprietário contra eventuais
constrições judiciais em ações de execução de dívidas.
Embora
a proteção legal se limite, em regra, a um único imóvel destinado à residência
da família, a jurisprudência tem ampliado essa interpretação, admitindo, por
exemplo, a extensão do benefício a imóveis contíguos, dependências utilizadas
por familiares ou mesmo àqueles cuja renda de aluguel é essencial para a
subsistência. Essa abordagem tem por fundamento a preservação dos princípios da
dignidade da pessoa humana e da função social da propriedade, pilares que
orientam a aplicação dessa proteção jurídica no cenário atual.
Flávia
Marques e Isabelle Oliveira: O bem de família, conforme previsto no
Código Civil e na Lei 8.009/1990, refere-se a um imóvel que cumpre função de
moradia para um núcleo familiar, podendo ser de propriedade de qualquer um de
seus membros, independentemente de sexo, estado civil ou vínculo de parentesco.
O sentido de entidade familiar para fins de determinação do bem de família é
interpretado de forma ampla, abrangendo modelos familiares diversos, como as
famílias monoparentais e até as unipessoais. Esse é o entendimento
incontroverso firmado pelo STJ na Súmula 364, onde se lê: “O conceito de
impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a
pessoas solteiras, separadas e viúvas.”
Além
da extensão quando à definição do sentido de família, a impenhorabilidade do
bem de família inclui não apenas do imóvel em si, mas estende-se aos bens
acessórios e pertenças, abrangendo, em casos de execução os bens essenciais à
manutenção do lar, como eletrodomésticos, aparelhos eletrônicos e outros
utensílios indispensáveis ao funcionamento da residência.
Atualmente,
o ordenamento jurídico brasileiro prevê duas modalidades de bem de família. A
primeira, chamada de bem de família voluntário (ou convencional), é instituída
pela vontade dos interessados e seus efeitos dependem de registro perante o
cartório competente, conforme os artigos 1.711 a 1.722 do Código Civil e no
artigo 833, I, do Código de Processo Civil. A segunda modalidade é o bem de
família legal (ou obrigatório), regulamentado pela Lei 8.009/1990 e que
independe de registro, sendo instituído por foça da própria lei.
Em
regra, se o devedor for proprietário de mais de um imóvel que cumpra função de
moradia e se qualifique como bem de família, a impenhorabilidade recairá sobre
o imóvel de menor valor, por força do instituto do bem de família legal. No
entanto, se o devedor instituir bem de família voluntário sobre imóvel de maior
valor, este será o protegido pela impenhorabilidade, prevalecendo sua vontade.
Partindo dessas premissas, a Primeira Turma do STJ reiterou seu entendimento de
que ambos, bem de família voluntário e bem de família legal, mantêm relação de
coexistência harmoniosa, não havendo relação de exclusão ou revogação entre os
institutos. [2]
Excepcionalmente,
o STJ vem permitindo a ampliação da proteção da impenhorabilidade para mais de
um imóvel do devedor quando restar comprovado que ambos os imóveis são
destinados à residência de sua família, como ocorre em situação em que, após o
divórcio, a ex-esposa do devedor passa a morar no segundo imóvel com o filho do
casal.[3]
Em
outras palavras, a baliza fundamental utilizada pelo STJ é a função de servir
como moradia, de modo que, se o devedor possui mais de um imóvel, mas somente
um deles é utilizado como moradia, enquanto os demais são adquiridos para
investimento ou fonte de renda (como imóveis alugados ou desocupados), a
proteção legal da impenhorabilidade recairá apenas sobre o imóvel utilizado
como residência.
–
Imóveis que são bens de família de alto valor podem ser penhorados? Nos casos
julgados envolvendo esses bens, quais critérios foram utilizados para
considerar um bem como de alto valor (ou não) e permitir ou negar a penhora do
imóvel?
Juliana
César Farah e Isabella Rodrigues Souto Amaral: No ordenamento
jurídico brasileiro ainda não há previsão específica acerca da (im)possibilidade
de penhora de bem de família de alto valor, sendo certo que as exceções
impostas pelo artigo 3º da Lei n° 8.009/1990 não trazem qualquer indicação
nesse sentido.
As
hipóteses excepcionais que autorizam a penhora do bem de família são limitadas,
abrangendo apenas as dívidas decorrentes de tributos ou encargos do próprio
imóvel, financiamentos destinados à aquisição do imóvel, pensão alimentícia,
dívidas trabalhistas, execução de fiança locatícia, indenizações por atos
ilícitos praticados pelo proprietário, financiamentos para construção ou
reforma, e imóveis dados como garantia em contratos de hipoteca ou alienação
fiduciária.
Em
razão disso, o Superior Tribunal de Justiça tem reiteradamente afirmado que a
proteção conferida ao bem de família, conforme estabelecido pela Lei n°
8.009/1990, não faz distinção entre imóveis de padrão modesto e aqueles de
elevado valor. Para que a impenhorabilidade se configure, basta que o imóvel
seja destinado à residência da entidade familiar, sem que o valor de mercado do
bem seja fator relevante para sua proteção.
Portanto,
em regra, a simples classificação de um imóvel como de alto padrão ou luxuoso
não é suficiente para afastar a proteção conferida pela impenhorabilidade. As
exceções à impenhorabilidade devem ser interpretadas de forma restritiva, em
conformidade com o objetivo primordial da Lei n° 8.009/1990, que visa assegurar
a proteção da entidade familiar e garantir o direito à moradia.
Em
raros julgados do Tribunal de Justiça de São Paulo (2280186-94.2020.8.26.0000;
TJSP; Agravo de Instrumento 2011061-57.2019.8.26.0000; Relator (a):
Sandra Galhardo Esteves; Órgão Julgador: 12ª Câmara de Direito Privado; Foro
Central Cível – 22ª Vara Cível; Data do Julgamento: 22/05/2019; Data de
Registro: 23/05/2019; TJSP, AI n. 0015059-48.2011.8.26.0000, Rel. Des. JACOB
VALENTE, j. em 01/06/2011); , contudo, é possível verificar a relativização
dessa regra, admitindo-se a penhora de bens considerados de luxo ou alto
padrão, muito superior às necessidades essenciais e ao endividamento do
devedor, desde que uma parte do valor obtido com a arrematação do imóvel seja
destinada à compra de outro de menor valor para o devedor.
O
raciocínio também decorre da aplicação do princípio da dignidade humana: no
caso de o valor do bem de família ser elevado, a sua alienação certamente
permitirá a obtenção de recursos mais do que suficientes para a aquisição de
residências que ofereçam um padrão de conforto compatível com o que o devedor
desfrutava no imóvel penhorado, ainda que em um nível ligeiramente mais
simples. Assim, entende-se que o direito constitucionalmente garantido é à
moradia digna, e não à propriedade de imóvel à escolha do devedor insolvente.
Nesses
casos, os acórdãos levaram em conta a metragem do imóvel, sua localização, o
seu valor de mercado, bem como a comparação desse valor com o saldo devedor e,
ainda, a prévia tentativa de fraude à execução ou fraude ao credor.
Flávia
Marques e Isabelle Oliveira: O entendimento recente do STJ é de que
imóveis classificados como bens de família, independentemente de seu valor, não
podem ser penhorados, desde que atendam aos requisitos da Lei nº 8.009/90. A
proteção legal abrange imóveis de qualquer valor, inclusive os de alto valor ou
luxo, garantindo sua impenhorabilidade. A jurisprudência desta Corte tem
reforçado que a legislação não faz distinção quanto ao valor do imóvel, nem
cria regimes diferenciados para bens de família, sendo sua impenhorabilidade
uma norma cogente de ordem pública, que não pode ser flexibilizada por decisões
judiciais. Portanto, o intérprete não pode estabelecer exceções além das
expressamente previstas no artigo 3º da Lei nº 8.009/90.
Contudo,
essa questão passou a ser um enfoque relevante nos Tribunais Estaduais, que têm
adotado posicionamentos distintos do STJ. Tribunais como os de São Paulo, Rio
de Janeiro, Paraná e Minas Gerais, em algumas decisões, têm admitido a penhora
de imóveis de alto valor, com base na necessidade de equilibrar a dignidade da
pessoa humana do devedor com o direito do credor à efetividade da execução.
Esses tribunais passaram a adotar uma abordagem mais flexível, considerando
fatores subjetivos como a localização e o valor do imóvel, para qualificar
determinados bens como “luxo” e, consequentemente, passíveis de penhora.
A
título de exemplo, o Tribunal de Justiça de São Paulo[4] entendeu que, apesar de o critério
para qualificar um imóvel como “luxo” seja subjetivo, seriam indicativos disso
a localização em bairro nobre de uma grande capital e o valor superior de R$ 5
milhões. Na decisão, ficou claro que, mesmo com a penhora, deveria ser
assegurada uma reserva de valor suficiente para garantir ao devedor a
manutenção de uma moradia digna. Em outro julgado[5], este mesmo Tribunal reconheceu a
impenhorabilidade de um imóvel de alto padrão, levando em consideração não
apenas a sua localização, mas também o fato de que o valor da dívida
representaria menos de 10% do valor de mercado do imóvel. Além disso, neste
caso, não foi apresentada prova contundente quanto à finalidade residencial
alegada pelo devedor. Em igual sentido podemos encontrar julgados do TJMG[6], do TJPR[7] e do TJRJ[8].
–
Proposta de reforma do Código Civil altera a definição do imóvel considerado
bem de família? Há pontos que podem ser aprimorados nessa proposta (a definição
de bem de alto valor, por exemplo, seria bem-vinda)?
Juliana
César Farah e Isabella Rodrigues Souto Amaral: A proposta de
reforma do Código Civil não altera a definição do imóvel considerado bem de
família, mas sugere a inclusão, em seu artigo 391-A, §3º, a possibilidade de
penhora parcial da moradia de alto padrão ou luxo para a satisfação de
créditos, desde que respeitado o limite de até 50% de seu valor de mercado,
garantindo, assim, a impenhorabilidade da parte restante.
Embora
a intenção da proposta seja equalizar a proteção da moradia familiar com os
direitos dos credores, o texto apresenta lacunas, como a falta de critérios
objetivos para a caracterização de um imóvel como “alto padrão” ou “luxo”.
A
ausência de uma definição clara nesse aspecto pode gerar incerteza jurídica,
resultando em decisões contraditórias e dificultando a aplicação uniforme da
legislação.
Se
aprovada nos termos propostos, a nova redação do Código Civil terá um impacto
significativo sobre a atual interpretação dos Tribunais, destacando que o atual
entendimento do STJ segue sendo no sentido de que, “para que seja
reconhecida a impenhorabilidade do imóvel, prevista na Lei nº 8.009/1990, basta
que o imóvel sirva como residência da família, sendo irrelevante se ele é ou
não de elevado valor” (STJ. AgInt no AREsp n. 2629196/SP, Relator
Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Data de Julgamento: 16/12/2024, T3 – 3ª
turma, Data de Publicação: DJe 20/12/2024)
Em
resumo, considerando a complexidade que envolve o tema da impenhorabilidade de
imóveis de alto valor, torna-se necessária a definição de critérios objetivos
para se criar um ambiente jurídico mais seguro.
Flávia
Marques e Isabelle Oliveira: Os intensos debates nos tribunais não
passaram despercebidos pela Comissão de Juristas encarregada de apresentar
proposta para atualizar o Código Civil. O anteprojeto de atualização, já
apresentado ao Senado, propõe suprir lacunas legislativas que puderam ser
observadas ao longo dos pouco mais de 20 anos de vigência do diploma civil.
No
que tange à impenhorabilidade, a proposta de atualização do Código Civil
introduz um acréscimo relevante ao artigo 391. A redação atualmente vigente
prevê que “pelo inadimplemento das obrigações, respondem todos os bens do
devedor”, ao que a proposta de atualização acrescenta qualificação destes bens,
restringindo-os àqueles “suscetíveis de penhora”. Sinteticamente, embora todos
os bens do devedor sejam passíveis de responder pelo inadimplemento, tal regra
limita-se àqueles que podem ser legalmente penhorados. Ficou a questão: e quais
são os bens não suscetíveis de penhora?
Nessa
esteira, a proposta insere dispositivo alfanumérico, artigo 391-A, o qual
determina expressamente quais são os bens considerados “intangíveis por ato de
penhora”. Segundo os incisos do §1º do artigo 391-A proposto, considera-se como
“patrimônio mínimo existencial”: (I) a casa de morada, onde habitam o devedor e
sua família; (II) o módulo rural, único do patrimônio do devedor; (III) a sede
da pequena empresa familiar.
Finalmente,
o anteprojeto acrescenta uma exceção, determinando, no §3º do artigo 391-A, que
“a casa de morada de alto padrão pode vir a ser excutida pelo credor, até a
metade de seu valor, remanescendo a impenhorabilidade sobre a outra metade,
considerado o valor do preço de mercado do bem”. Esta previsão, portanto,
admite a penhora parcial do bem de família, sem perder de vista a proteção de,
pelo menos, 50% do valor de mercado deste bem, que seguirá sendo resguardado
pela impenhorabilidade.
Além
da instituição de parâmetros objetivos sobre quais bens são ou não suscetíveis
de penhora, definindo o que seria o patrimônio mínimo resguardado pela
impenhorabilidade, o anteprojeto revoga integralmente o título reservado ao bem
de família voluntário contido nos artigos 1.711 a 1.722 e os artigos 260 a 265
de Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/73), os quais disciplinam o registro
de bem de família. É, sem dúvidas, uma alteração bastante significativa, que
muda a forma como está estruturado o instituto do bem de família.
Nesse
sentido, a proposta legislativa tem como objetivo trazer maior clareza e
objetividade ao regramento da impenhorabilidade, com a definição do que é ou
não impenhorável. Ainda assim, a proposta não exaure a discussão a respeito dos
contornos da impenhorabilidade, já que mantém a indefinição a respeito do que
será “casa de morada de alto padrão” e garante a proteção de metade do seu
valor, que continuaria impenhorável. Por fim, interessante notar que a proposta
acaba por extinguir do ordenamento jurídico brasileiro a figura do bem de
família convencional.
–
A quem a definição sobre imóveis que são bens de família de alto valor tem
potencial para impactar? O planejamento sucessório, por exemplo, leva em
consideração esse tipo de análise?
Juliana
César Farah e Isabella Rodrigues Souto Amaral: A definição sobre
imóveis que são bens de família de alto valor podem afetar a segurança
patrimonial das famílias, especialmente em cenários de endividamento, mas, por
outro lado, beneficia credores, como instituições financeiras, pois estes
passam a ter maior acesso ao patrimônio do devedor para satisfação de dívidas.
Também,
a nova definição de imóveis de alto valor pode impactar diretamente a
estratégia a ser adotada no planejamento sucessório. Isto porque, se o imóvel
for considerado de alto valor e sujeito à penhora parcial, os herdeiros podem
enfrentar dificuldades para manter o patrimônio dentro da família, sobretudo em
situações em que a liquidez é limitada.
Nesse
contexto, torna-se essencial a adaptação de estratégias de organização
patrimonial, tais como a criação de holdings familiares, doações com reserva de
usufruto e reorganização de bens.
Flávia
Marques e Isabelle Oliveira: A definição sobre bem de família de alto
valor tem o potencial de impactar significativamente tanto devedores quanto
credores com patrimônios de alto padrão que estejam envolvidos em disputas
judiciais. Com as mudanças legislativas propostas, a penhora de bens que
anteriormente eram tidos como impenhoráveis passa a ser admitida dentro de
limites específicos, o que implica maior possibilidade de satisfação do
crédito.
Consideradas
as regras vigentes hoje, o planejamento sucessório não pode deixar de observar
a titularidade do bem de família, sob pena de atrair riscos evitáveis. Em que
pese seja comum que estratégias de planejamento envolvendo a transferência do
patrimônio para sociedades empresárias, conhecidas popularmente como
“holdings”, eventual integralização do imóvel caracterizado como bem de família
afasta a impenhorabilidade, uma vez que a titularidade do bem deve ser da
pessoa física.
Com
as alterações propostas pelo anteprojeto de atualização do Código Civil, será
possível penhorar parcialmente bens de família de alto padrão, ainda que
estejam sob titularidade de pessoa física. Nesse cenário, a integralização de
bens de família em holdings poderá representar uma alternativa de proteção ao
patrimônio do devedor, o que altera a lógica observada na elaboração do
planejamento.
Em
outras palavras, é possível que planejamentos sucessórios já realizados tenham
de ser revistos, considerando que a proteção ao bem de família sob titularidade
da pessoa física não será mais integral e absoluta. Paralelamente,
planejamentos sucessórios futuros deverão ser elaborados sob uma nova ótica,
tendo em mente que eventual integralização de bens de família poderá ser uma
alternativa de interesse. Conforme já adiantado, a impenhorabilidade é um campo
de disputa, em que despontam conflitos principiológicos, e a alteração
legislativa não esgotará as controvérsias e tampouco as possibilidades que o
tema comporta.
Fonte: L&M