Como é sabido, a Lei 14.711/23 alterou a 8.935/94
para, dentre outros, permitir que tabeliães de notas atuem como árbitros; o que
gerou a iniciativa de regulamentação dessa atuação, a ser editada pelo Conselho
Nacional de Justiça. As breves reflexões que seguem buscam chamar a atenção
para pontos que, nesse contexto, podem ser relevantes e que, talvez, convenha
levar em conta.
Antes de tudo, é preciso atentar para os limites da
regulação a cargo do referido órgão e, mais especificamente, convém não
confundir o — legítimo e necessário — controle estatal das atividades típicas
de tabelião, de um lado; com sua atuação na qualidade de árbitro, isto é, como
terceiro investido de poder jurisdicional que lhe é outorgado por vontade das
partes envolvidas em dada controvérsia, de outro lado.
Então, o CNJ tem atribuição para regular a atuação
dos tabeliães diante do novo cenário, isto é, os possíveis desdobramentos da
ampliação autorizada pela lei, de sorte a preservar a higidez da atuação do
notário, como tal. Contudo, respeitada convicção diversa, o órgão não tem
competência para regular a atuação de árbitros — sejam eles tabeliães ou não.
Esse ponto é fundamental e convém repetir: não podem ser confundidas a atuação
do tabelião como tal, de um lado; e sua atuação como árbitro, de outro.
Por outras palavras ainda: se a atuação como
tabelião comporta correição, a de arbitragem não; e o controle judicial que
sobre essa última possa haver — e há, ainda que excepcional — já está regulado
pela Lei 9.307/96.
Árbitros e partes não estão sujeitos ao
CNJ
E não há qualquer desdouro para o CNJ nessa
limitação. Se fosse dado ao referido órgão regular a atuação do árbitro (ainda
que tabelião), indiretamente — mas, não de forma menos relevante — o órgão
estaria a criar regras para as partes que querem se valer desse meio de solução
de conflitos; e que, nem mesmo em tese, estão sujeitas à atribuição do
conselho.
O processo arbitral — aí incluídos os atos do
procedimento e as posições próprias da relação jurídica processual (poderes,
sujeições, faculdades, ônus, deveres) — já é regulado pela lei e, claro, pelas
próprias partes. Nas arbitragens institucionais, isso significa a adesão às
regras da câmara arbitral que elas tenham escolhido — às quais, naturalmente,
também aderem os árbitros que se disponham a ali atuar.
Ademais, às partes cabe regular o processo por
convenções que se materializam no termo de arbitragem ou ata de missão.
Portanto, se o CNJ, a pretexto de disciplinar a atuação do tabelião, viesse a
regular o processo arbitral (procedimento ou relação processual), seria patente
a inconstitucionalidade da regulação, por afronta, dentre outros ao disposto no
artigo 22, inciso I da CF.
Sobre câmaras de arbitragem nesse específico
contexto, é de se presumir que elas serão oportunamente constituídas — embora,
registre-se de passagem, não se vislumbre impedimento legal que impeça a
imediata atuação de tabeliães como árbitros ad hoc ou de forma
relacionada a câmaras já instituídas e que admitam árbitros estranhos às
respectivas listas (ou da qual um dado tabelião venha a fazer parte).
Contudo, o importante aqui é que não há fundamento
jurídico para se atribuir atividade correicional sobre os centros de
arbitragem. Novamente, é preciso distinguir a atuação como tabelião e sua
atuação como árbitro: se esta eventualmente prejudica postulados indissociáveis
do exercício daquela, então o controle correicional será sobre a atividade
daquele, não a do outro. E se a atividade correicional dos tabeliães já existe,
não há razão para se criar uma estrutura que os fiscalize na qualidade de árbitros.
Os equívocos que eles possam eventualmente cometer (na atividade de árbitros)
estão sujeitos a um sistema de controle jurisdicional — não administrativo — a
cargo do Poder Judiciário, nos termos da lei.
Mais ainda: árbitros são escolhidos pelas partes e
não faz sentido aplicar à arbitragem a lógica de distribuição de processos,
como se a câmara seguisse a lógica de um tribunal estatal. Em hipóteses
excepcionais, havendo cláusula compromissória, se não houver ajuste sobre a
escolha dos árbitros, então sua nomeação virá de acordo com o regulamento da
câmara ou nos termos do § 4º do artigo 7º da Lei 9.307/96 — em qualquer
hipótese, sem interferência de órgão correicional. Para tanto não será o caso
de recorrer a conceitos próprios da atuação estatal, tais como relação entre o
objeto do litígio e uma dada base territorial ou até o de prevenção.
Na arbitragem, a determinação da sede é fruto de
escolha das partes, em consideração às consequências legais extraídas daquele
conceito, mas sem vinculação física necessária a uma dada base territorial.
Também seria incorreto prever que, diante do impedimento de um dado tabelião, a
arbitragem ficaria automaticamente a cargo de outro da mesma câmara: esse é
raciocínio próprio do Judiciário porque, na arbitragem, diante de um óbice como
o mencionado, caberia às precipuamente às partes escolher novo árbitro.
Sugestões
Se possível, seria salutar que a regulamentação a
cargo das câmaras (não do CNJ) pudesse avançar em alguns pontos. Por exemplo,
nesta quadra da evolução do instituto, não há sentido em se estabelecer sigilo
como regra geral porque a confidencialidade não o é na Lei de Arbitragem. As
partes podem convencioná-la, mas seria conveniente que, ao invés de puramente
se falar em sigilo, a regulamentação cogitasse de formas de divulgação de dados
de interesse da coletividade, sem que ficassem prejudicados os das partes — se
e quando optassem pela confidencialidade. Seria recomendável, também, que o
regulamento das câmaras previsse ao menos a figura do árbitro de emergência — a
excluir ou a concorrer com o Judiciário, enquanto não constituído o tribunal
arbitral.
Também seria uma evolução se o regulamento previsse
o que se poderia qualificar como árbitro de prova, para a produção antecipada
nos casos previstos pelos incisos II e III do artigo 381 do CPC – que, ao menos
até aqui, a jurisprudência do STJ reconheceu deve ser pedida aos árbitros, não
ao Judiciário.
Finalmente, capítulo que merece atenção é o relativo
ao dever de revelação, conectado à imparcialidade e independência do árbitro,
que é objeto de relevantes debates judiciais em casos concretos e, em abstrato,
objeto de ação direta em que se alega a inconstitucionalidade do artigo 14 da
Lei de Arbitragem (ADPF 1.050/DF, convertida em ADI).
Em primeiro lugar, será um equívoco atribuir ao
juízo corregedor o poder de decidir. Novamente, a atuação correicional é sobre
o tabelião, não sobre o árbitro. Os regulamentos das câmaras deverão prever a
instituição de comitês para julgamento de eventuais impugnações, compostos por
árbitros, não por integrante do Poder Judiciário — que, nesse caso, nem
atividade jurisdicional exerceria.
Essa eventual interferência é incompatível com o
sistema da Lei 9.307/96. Para que ela pudesse ocorrer, seria preciso que a lei
criasse uma espécie de processo arbitral diferenciado para tabeliães; o que não
existe e, a rigor, nem precisa existir. As regras da Lei de Arbitragem e as
convencionadas pelas partes (aí incluído o regulamento da câmara à qual
aderirem) são suficientes para reger a arbitragem com a presença de tabelião.
Considerações finais
Tudo isso é dito, fique claro, na perspectiva de que
a arbitragem por tabeliães viceje e que a autorização legal seja concretizada.
Para que isso ocorra, naturalmente, não basta a lei, mas é preciso que os
agentes do mercado enxerguem esse mecanismo de resolução de conflitos como
confiável e economicamente racional. Criar um centro de arbitragem é apenas o
primeiro passo. Se outros não vierem, a possibilidade não irá além disso.
De todo modo, o sistema vigente, sob o prisma da
arbitragem, é suficiente para que, desde que haja demanda, os tabeliães comecem
a atuar na arbitragem. Unindo-se uma coisa à outra, arrisca-se dizer que, se
eles o fizerem, um campo em que poderão atuar de forma diferenciada será o da
produção antecipada de prova, acima mencionado. Nesse terreno, sua experiência
poderá ser muito relevante em casos de exibição de documentos, de oitiva de
testemunhas e, por que não, de prova pericial.
Quem viver verá; ou não…
Fonte: Conjur