Inexistem dúvidas de que a forma é
tema central para a validade de atos e de negócios jurídicos. Dentro do regime
jurídico da alienação fiduciária, o qual é marcado por uma dinâmica de formação
de microssistemas, isso não é diferente. Enquanto que agentes que integram o
Sistema Financeiro Imobiliário (SFI) e o Sistema Financeiro de Habitação (SFH)
podem elaborar instrumentos particulares com força de escritura pública, o
restante dos agentes deverão observar a regra geral esculpida no art. 108 do
Código Civil de formalização dos negócios jurídicos que versem sobre
constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre
bens imóveis.
Não por acaso o legislador seguiu esse caminho na
Lei 9.514/97. Há boas razões para isso. Com o objetivo do fomento do
financiamento imobiliário para pessoas de baixa renda e por serem fortemente
regulados e supervisionados por órgãos governamentais, agentes que integram os
microssistemas do SFI e SFH atuam de forma imparcial, pois têm exclusivo
objetivo de fomentar o crédito imobiliário, ou seja, não têm interesse próprio
no negócio jurídico garantido por alienação fiduciária, como outros agentes, a
exemplo de construtoras, loteadoras e imobiliárias.
O equilíbrio e a rigidez decorrentes do
microssistema protege as operações da judicialização por fraudes, pois
entidades que representam o SFI atuam, de forma isenta, na estabilização
jurídica dos contratos imobiliários em larga escala.
Sobre o tema, no mês de agosto do último ano, o
CNJ (Conselho Nacional de Justiça) julgou em plenário, por unanimidade,
improcedente o pedido de suspensão de eficácia do ato da Corregedoria Geral de
Justiça de Minas Gerais, o qual restringia, nas alienações fiduciárias, o uso
de instrumento particular com efeitos de escritura pública para agentes do SFI,
cooperativas de crédito ou administradoras de consórcio de imóveis fulcrando
argumentos na externalidade positiva em prol dos hipossuficientes e do
interesse público.
A regulamentação da matéria veio pela
Corregedoria Nacional de Justiça ao editar o Provimento 172/2024 que, alterando
o Código Nacional de Normas (Foro Extrajudicial), inseriu o artigo 440-AO,
passou a prever de maneira clara que a disposição contida no artigo 38 da Lei
9.514/97 sobre os instrumentos particulares com efeitos de escritura pública
possui aplicabilidade restrita ao agentes do SFI, bem como para as cooperativas
de crédito e para outras exceções legais ao artigo 108 do Código Civil, tais
como administradoras de consórcio de imóveis e entidades que integram o SFH.
O entendimento, que vai na esteira daquele
firmado pelo colegiado, se lastreia na premissa de que instrumento público
garante a segurança jurídica e a previsibilidade esperada por todos os
envolvidos nos negócios jurídicos imobiliários. Isso é particularmente relevante
para os consumidores, que poderão saber de antemão quais agentes podem utilizar
a via do instrumento particular com efeito de escritura pública, sem que corram
o risco de futura declaração de nulidade do negócio jurídico por vício de
forma. Com a decisão do colegiado, os consumidores, acima de tudo, estarão
agora assessorados por terceiro imparcial na análise das escrituras de
alienação fiduciária, tendo — por dever legal — obrigação de coibir abuso do
poder econômico de uma das partes.
Nesse contexto, não é demais recordar que a
Corregedoria Nacional possui diversas atribuições constitucionais e
regimentais, dentre as quais está a realização de atividades de cunho
regulatório, focadas na “expedição de atos normativos e orientações destinados
ao aperfeiçoamento da prestação jurisdicional e dos serviços notariais e de
registro”. A atuação deve buscar “a) densificação ou fortalecimento de
princípios constitucionais ou mesmo legais; b) a ausência de antinomia de
conteúdo entre o ato normativo e a normatização constitucional ou
infraconstitucional para o mesmo tema”.
Nesse espeque, o Provimento 172/2024 agiu bem ao
pacificar e sistematizar esse entendimento que vai ao encontro de diversas leis
que tratam sobre o instrumento particular com força de escritura pública, as
quais sempre restringindo seu uso para as instituições financeiras que atual
com o crédito imobiliário (artigo 17-a da Lei 14.063, artigo 221, §5º da 6.015
e inciso IV, artigo 6 da Lei 14.382).
E aqui ainda vale ressaltar que qualquer
tentativa de um alargamento interpretativo artificial para incorporar outras
instituições dentro do sistema SFI e SFH seria não apenas ilegal e
inconstitucional, mas violaria as próprias atribuições de competências
funcionais de cada setor econômico. A Lei nº 4.380/64, que estabelece o Sistema
Financeiro Habitacional (SFH), teve como objetivo criar uma política pública em
favor do direito habitacional, editada em um cenário institucional atípico,
previu exceções ao regramento geral do Código Civil, com finalidade social de
garantir moradia.
Esse objetivo social é aprimorado para o
propósito de facilitar a concessão de crédito, por meio da Lei nº 9.514/97 ,
que inaugura o Sistema Financeiro Imobiliário (SFI). Trata-se de sistemas
distintos mas complementares, criados em momentos diferentes do Brasil, com a
semelhança de serem fechados, com objetivo imobiliário e altamente regulados
pelo Estado.
Qualquer outra interpretação para além dada pela
forma sistemática e adequada esculpida no Provimento 172/2024, somente seria
possível com uma profunda reforma do sistema de concessão de credito
imobiliário brasileiro através da legitimidade democrática do poder
legislativo.
Fonte: Conjur