Este artigo volta-se a
discutir se é ou não viável (ou até recomendável) flexibilizar a
obrigatoriedade de escritura pública prevista no art. 108 do Código Civil, que
estabelece o seguinte:
Art. 108. Não dispondo
a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios
jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de
direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário
mínimo vigente no país.
Sobre o tema,
recentemente, saiu mais um didático provimento da Corregedoria Nacional de
Justiça do CNJ (CN-CNJ), sob a gestão proativa e incansável do ministro Luis
Felipe Salomão, que liderou inúmeras iniciativas de alto impacto na organização
das atividades notariais e registrais, como a elaboração de um Código Nacional
de Normas - CNN-CNJ.
Trata-se do provimento
172, que introduziu o seguinte art. 440-AO ao CNN-CNJ:
Art. 440-AN. A permissão
de que trata o art. 38 da 9.514/97 para a formalização, por instrumento
particular, de alienação fiduciária em garantia sobre imóveis e de atos conexos
é restrita a entidades que autorizadas a operar no âmbito
do SFI - Sistema de Financiamento Imobiliário (art. 2º da lei
9.514/97), com inclusão das cooperativas de crédito.
Parágrafo único. O
disposto neste artigo não exclui outras exceções legais à exigência de
escritura pública prevista no art. 108 do Código Civil, como os atos
envolvendo:
I. Administradoras de
Consórcio de Imóveis (art. 45 da lei 11.795, de 8/10/08);
II. Entidades
integrantes do Sistema Financeira de Habitação (art. 61, § 5º, da lei 4.380, de
21/8/64.
Esse dispositivo
consolida a interpretação sistemática e teleológica dada pelo Plenário do CNJ1
ao art. 38 da lei 9.514/97. Reconhece que, à luz desse preceito, somente as
entidades integrantes do SFI estão autorizadas a formalizar, por instrumento
particular, a alienação fiduciária em garantia de imóveis e os eventuais
negócios jurídicos conexos.
Trata-se de uma das
exceções legais à obrigatoriedade, prevista no art. 108 do Código Civil2, de
escritura pública para negócios translativos ou de oneração de direitos reais
sobre imóveis de valor superior à 30 salários mínimos.
Com preocupações
didáticas - próprias de atos infralegais -, o supracitado dispositivo do
CNN-CNJ foi além para apontar outros dois exemplos de exceções à
obrigatoriedade do art. 108 do Código Civil: A de negócios translativos ou de
onerações de imóveis promovidos por administradores de Consórcio de Imóveis e
por entidades do SFH - Sistema Financeiro de Habitação (art. 45
da lei 11.795/08; art. 61, § 5º, da lei 4.380/64).
Diante desse cenário,
indaga-se: Dever-se-ia ou não alargar as exceções legais ao art. 108 do Código
Civil, permitindo que particulares ou empresas possam formalizar negócios
imobiliários por instrumento particular?
A resposta, a nosso
sentir, é negativa.
Consideramos que essa
ampliação seria extremamente danosa à segurança jurídica do nosso ordenamento e
frustraria diversas finalidades de interesse público que pairam sobre o tráfego
imobiliário.
Isso, porque há
interesse público na exigência de escritura pública para negócios translativos
ou de oneração de imóveis valiosos. Sobre o tema, tivemos a oportunidade de
escrever em nosso manual de Direito Civil em coautoria com João Costa-Neto, in
verbis:
Segundo o art. 108 do
CC, devem ser formalizados por escritura pública (documento no qual o tabelião
de notas redige o negócio jurídico) negócios jurídicos envolvendo direitos
reais sobre imóveis de valor superior a 30 salários-mínimos, considerado o
maior salário-mínimo do país.
Duas finalidades
principais inspiram a norma: (1) monitoramento estatal em relação aos tributos,
como o ITBI e o imposto de renda decorrente da valorização do imóvel, conhecido
como IR sobre o ganho de capital; e (2) dificultar "grilagens",
pois é mais dificil falsificar um contrato de compra e venda de imóvel se este
tiver de ser lavrado por um tabelião.
Outro exemplo de
finalidade que inspira a regra do art. 108 do CC é viabilizar a utilização dos
serviços notariais na prevenção de crimes de lavagem de dinheiro e de
financiamento de terrorismo e de proliferação de armas de destruição em massa,
conforme arts. 137 e seguintes do CNN-CNJ. É que os tabeliães têm dever de
reportar eventual indício desses crimes a partir de fatos insólitos nos
negócios que vier a formalizar.
Na experiência
brasileira, as exceções à obrigatoriedade de escritura pública têm ocorrido em
favor de instituições financeiras e de administradoras de consórcios de
imóveis3, que são submetidas a um regime rigoroso de fiscalização pelo Banco
Central.
Entendeu o legislador
que, por conta desse ambiente regulatório e fiscalizatório capitaneado por uma
autarquia (o Banco Central), seria viável flexibilizar a obrigatoriedade de
escrituras públicas para a formalização de negócios imobiliários
"financiados" por essas entidades.
Não é, porém, adequado
ultrapassar essa linha vermelha, abrindo espaço para que qualquer empresa ou
particular possam lavrar instrumentos particulares com força de escritura
pública em negócios imobiliários.
Transpassar o rubicão
aí seria abalar a segurança jurídica do sistema imobiliário brasileiro. Todas
as finalidades de interesse público supracitadas se frustrariam.
Além disso, é segredo
de polichinelo que não necessariamente haveria barateamento para o consumidor,
pois é consabido que os agentes privados costumam cobrar "taxas de
escrituração" do consumidor ou majorar ocultamente o preço cobrado do
consumidor, repassando a este os custos com profissionais contratados para a
elaboração dos instrumentos.
A visão ora exposta
encontra eco na comunidade jurídica majoritária do Direito Civil, do que dá
prova o recente anteprojeto de reforma do Código Civil. Esse anteprojeto foi
elaborado pela comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do
Código Civil, nomeada pelo presidente do Senado4, presidida pelo ministro Luis
Felipe Salomão e sob a vice-presidência do ministro Marco Aurélio Bellizze.
A comissão, integrada
por 38 juristas (com inclusão de professores, ministros do STJ e outros
juristas), sugeriu a ampliação da obrigatoriedade da escritura pública para
negócios imobiliários, exigindo-a mesmo para imóveis abaixo de 30 salários
mínimos (com um desconto de emolumentos para esses casos). Veja o texto do novo
texto sugerido para o art. 108 do CC:
Art. 108. Não dispondo
a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios
jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de
direitos reais sobre imóveis.
§ 1º Os emolumentos de
escrituras públicas de negócios que tenham por objeto imóvel com valor venal
inferior a trinta vezes o maior salário-mínimo vigente no país, terão os seus
custos reduzidos em cinquenta por cento.
§ 2º Em caso de dúvida
e para as finalidades deste artigo, o valor do imóvel é aquele fixado pelo
Poder Público, para os fins fiscais ou tributários.
Como se vê, em nome da
preservação da segurança jurídica no tráfego imobiliário e na preservação dos
diversos interesses públicos que rondam os negócios imobiliários, é inadequado
entregar a atores privados o poder de elaborar instrumentos particulares com
força de escritura pública, notadamente quando esses agentes não estiverem
sujeitos a um rigoroso regime estatal de fiscalização.
Do ponto de vista
operacional, temos testemunhado uma maximização constante na agilidade na
confecção de escrituras públicas pelos cartórios de notas, especialmente depois
da permissão dada para a elaboração de escrituras públicas eletrônicas com o
provimento 100 do CNJ (o qual foi incorporado ao Código Nacional de Normas do
CNJ - provimento 149).
Sempre é possível
pensar em novas soluções, como, por exemplo, a de o cartório de notas manter
escrituras públicas pré-prontas de vendas de uma determinada incorporadora para
rápida assinatura (de modo eletrônico) com a concretização de venda.
Em suma, a formalização
de negócios translativos ou de oneração de imóveis por meio de agentes sujeitos
a um regime rigoroso de fiscalização pelo Estado é uma conditio sine qua non da
preservação das diversas finalidades de interesse público que cerca o tráfego
imobiliário. Não convém, pois, flexibilizar o art. 108 do Código Civil. Ao
contrário, parece-nos mais adequada a alternativa de ampliação da
obrigatoriedade de escritura pública na forma do apontado no anteprojeto de
reforma do Código Civil.
Fonte: Migalhas