Notas
introdutórias
Com imensa honra
integrei a Comissão de Juristas, responsável pela apresentação de um
anteprojeto de lei de atualização e reforma do Código Civil. Ingressei na
Comissão em setembro de 2023 e a partir de então foram horas de intensa imersão
no Direito Civil, especialmente, no Direito das Coisas, por fazer parte dessa
subcomissão ao lado do Desembargador Marco Oliveira Milagres (TJMG) e do
Advogado Carlos Antônio Vieira Fernandes Filho, sob a relatoria do
Desembargador Marco Aurélio Bezerra de Melo (TJRJ). Trago algumas paixões na
vida, e a propósito deste escrito compartilho com os leitores minha paixão pela
literatura. Assim, não poderia iniciar estas linhas, sem dividir com o leitor
uma imagem que sempre me vem à mente, quando penso no Código Civil vigente.
Sabe-se que o Código
Civil brasileiro de 2002, em muitos aspectos, assemelha-se ao personagem
Benjamin Button, imortalizado pela escrita precisa de Fitzgerald, na década de
19221 e, posteriormente, conhecido também por aqueles que nutrem o fascínio
pelas telas de cinema numa produção magnificamente dirigida por David Fincher e
interpretada pelo trabalho impecável dos atores Brad Pitt, Cate Blanchet e
Julia Ormond2.
Quem assistiu ao filme
ou leu o romance de Fitzgerald, sabe que Benjamin Button dribla a ordem de
Chronos3 e rejuvenesce com o passar dos anos. Assim, apesar de nascer idoso,
com os achaques próprios da idade, à medida que o tempo passa, Benjamin vai
atingindo o seu auge em aptidão física, psíquica e intelectual. Nas telas do
cinema esse apogeu é retratado pela beleza do ator Brad Pitt. Embora tanto o
romance quanto o filme homônimo nos proponham certas conclusões a respeito da
solidão inerente a esse caminho inverso, trilhado pelo personagem, permite-nos
também sonhar com o tempo, como um fiel amigo, conduzindo-nos à nossa melhor
forma.
Infelizmente, a
semelhança entre o Código Civil de 2002 e Benjamin Button guarda semelhança
apenas quanto ao nascimento. Ambos nasceram velhos, mas enquanto o herói de
Fitzgerald rejuvenesce, o nosso Código, infelizmente, permaneceu velho por todo
o tempo. Por essa razão, antes de tudo, é preciso registrar a importância
fundamental da jurisprudência brasileira que transcendeu a norma e a aproximou
da realidade social que a alberga.
Para tanto, é suficiente
lançar um olhar para o passado, para compreender que a aprovação do Projeto de
1975, transformado posteriormente na Lei nº 10.406, de 2002, inauguraria,
invariavelmente, novas dificuldades de harmonização das fontes normativas
revisitadas pelos valores axiológicos introduzidos pela redemocratização do
país e cristalizados na Carta Política de 19884.
Desse modo o trabalho
da Comissão5, sob a condução dos incansáveis Relatores Gerais Professores Rosa
Maria Nery e Flávio Tartuce, foi pautado na manutenção das diretrizes
principiológicas da operabilidade, sociabilidade e eticidade, marcas indeléveis
do Código Reale, que representa extrema sensibilidade e acerto na normatização
da vida privada.
Destarte, procurou-se
incorporar ao texto normativo aquilo que já estava consolidado na
Jurisprudência dos Tribunais Superiores; nos Enunciados das Jornadas de Direito
Civil e na Legislação extravagante afeita a cada área do Direito Civil.
Feitas essas
considerações iniciais, passa-se a abordar o tema que será objeto dessa
reflexão: usucapião familiar.
A escolha do tema se
deveu a dois fatores. Primeiro por se tratar de um dos institutos mais
utilizados para resolver a questão fundiária no Brasil, desempenhando
importante papel de regularização fundiária e de proteção da posse. O segundo
motivo, igualmente importante, deve-se aos dados da estatística demonstrando
que mais da metade da população brasileira tem seus domicílios liderados por
mulheres.
No censo 20226, dos 75
milhões de lares, 50,8% eram chefiados por mulheres, o que corresponde a 38,1
milhões de lares. Nesse panorama, não se pode furtar de lançar na atividade de
atualização desse normativo uma análise sob a perspectiva de gênero. Essa
recomendação, inclusive, pode ser vista em outros dispositivos que serão objeto
de futuras reflexões. Pois bem. Por essa razão, a lei 12.424, de 20117, em seu
Art. 9, alterou o Código Civil trazendo nova modalidade de aquisição de
propriedade por usucapião. Veja-se a redação vigente:
Art.
1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem
oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m²
(duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge
ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua
família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de
outro imóvel urbano ou rural.
§ 1o O direito previsto
no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
A nova modalidade de
usucapião, imediatamente, passou a ser palco de intensas digressões
doutrinárias e jurisprudenciais. Sabe-se que a usucapião tem incidência para
possibilitar a aquisição de propriedade de um bem por aquelas pessoas que
exercem atos de posse por certo período, sobre imóveis rurais e urbanos,
dando-lhes destinação social e econômica, sem, contudo, dispor do título de
propriedade necessário a transferências e negociações imobiliárias.
Controverte a doutrina
tratar-se de aquisição originária ou derivada, embora se veja na dogmática
brasileira a prevalência do entendimento de consubstanciar-se em forma de
aquisição originária de direitos reais, uma vez que sua incidência não
pressupõe a existência de uma relação jurídica anterior entre aquele que exerce
a posse com animo domini e o que vem a perder a coisa em razão de sua inércia,
associada ao transcurso do tempo8.
A doutrina
imediatamente passou a denominar a nova forma de aquisição de propriedade de
usucapião familiar ou por meação, também concebida como forma de aquisição
"especialíssima". Explica-se. Como dito, a maioria da doutrina pátria
concebe a usucapião como forma originária de aquisição da propriedade por não
pressupor relação jurídica anterior entre a pessoa do usucapiente e o anterior
proprietário. Nessa nova modalidade, porém, ao que parece, a aquisição seria
derivada, porquanto é imprescindível a existência de uma relação de
conjugalidade (firmada no casamento) ou de convivência (firmada na união
estável) entre o usucapiente e o anterior proprietário. Desse modo, para atrair
a incidência normativa, são exigidos alguns requisitos, a saber: i)
extensão do imóvel; ii) relação de conjugalidade ou união estável; iii)
abandono do lar, iv) o transcurso do tempo.
Outra situação que
rendeu calorosa digressão na doutrina foi a respeito de o objeto dessa
modalidade de usucapião ser alvo de composse ou de condomínio, na medida em que
a norma de forma expressa aduz "de 250 metros de área que divida com seu
ex-cônjuge ou ex-companheiro", o que levantaria a dúvida sobre a possibilidade
de sua incidência nos casos de entidades familiares regidas por regimes de bens
em que não houvesse a comunicação do patrimônio, a exemplo da separação
convencional de bens, prevista no art. 1.687 do Código Civil de 2002; ou,
ainda, se seria possível sua incidência caso se tratasse de bem particular
pertencente ao cônjuge ou convivente que deixou o lar.
Nesse ponto, parece-me
que atenderia melhor à exegese da norma e, em uma interpretação conforme a
constituição, ser possível a incidência do instituto ainda que a composse se
desse apenas na ordem dos fatos, sem a imprescindível mancomunhão do bem em
razão do regime patrimonial a incidir na entidade familiar. Nesse passo de
ideia, o fato de o imóvel ser registrado no nome de um ou de ambos os cônjuges
ou conviventes se demonstra irrelevante. O importante é que a posse direta do
bem seja compartilhada por ambos.
Outro ponto igualmente
debatido pela doutrina familiarista9, logo após a alteração legislativa,
deveu-se ao vocábulo "abandono". Para alguns, poderia reabrir a
possibilidade de perquirição de "culpa" nas rupturas familiares, indo
na contramão da exegese introduzida pela Emenda Constitucional nº 66, de 2010,
que transpôs essa inferência para o âmbito privado da vida do ex-casal,
primando pela concretização do direito fundamental à intimidade.
É digno de registro que
grande parte desses questionamentos já foi paulatinamente enfrentada pela
jurisprudência pátria e pelos enunciados das Jornadas de Direito Civil10, que
têm contribuído fortemente para a consolidação da hermenêutica privatística.
Assim, por óbvio não pode sofrer com a perda da propriedade a mulher que
necessita sair de casa em razão de violência doméstica. Pensar diferente seria
afrontar a hermenêutica do julgamento na perspectiva de gênero introduzida pela
Resolução nº 492, do CNJ11 e que igualmente serviu de baliza hermenêutica
para os trabalhos da Comissão de atualização do Código Civil de 2002.
Ultrapassadas essas
questões, passa-se à nova redação do dispositivo:
Art. 1.240-A Aquele que
exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse com intenção
de dono, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e
cinquenta metros quadrados), cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou
ex-convivente que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua
família, adquirir-lhe-á a propriedade integral, desde que não seja proprietário
de outro imóvel urbano ou rural
§ 1o O direito
previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma
vez.
§ 2. O prazo mencionado
neste dispositivo, deve ser contado da data do fim da composse existente entre
os ex-cônjuges ou os ex-conviventes.
§3. Presume-se cessada
a composse quando, a partir do fim da posse com intenção de dono, em conjunto,
o ex-cônjuge ou ex-convivente deixa de arcar com as despesas relativas ao
imóvel.
§ 4. As expressões
ex-cônjuge e ex-convivente, contidas neste dispositivo, correspondem à situação
fática da separação, independentemente de divórcio ou de dissolução de união
estável.
§ 5. O requisito do
abandono do lar deve ser interpretado como abandono voluntário da posse do
imóvel, não importando em averiguação da culpa pelo fim da sociedade conjugal,
do casamento ou da união estável.
A atualização deste
dispositivo, como pode ser observado, pautou-se na atualização do instituto
para albergar no vernáculo as entidades familiares homoafetivas, não fazendo
mais referência a ex-companheiro e sim ex-convivente, por alcançar a tutela da
pessoa independentemente de gênero ou orientação sexual. Restou consignado
o termo inicial da fluência do prazo, trazendo para a norma o que já era
conteúdo de enunciado. Outra alteração foi a substituição do termo
"domínio" por "propriedade", posto que o domínio é o poder
sobre a coisa, é o próprio pressuposto da pretensão, e o que se busca com a
usucapião é o título de propriedade.
Além disso, resta clara
a questão de o abandono ser voluntário, protegendo dessa forma aquela mulher
que sai de casa em razão de violência doméstica. Outro ponto que merece
destaque é a questão de explicitação da posse indireta a impedir a incidência
do instituto. Ou seja, é imprescindível que o anterior compossuidor ou
coproprietário deixe de efetivar todo pagamento relativo ao imóvel ou à
assistência material da família.
Assim, pode-se perceber
que a atualização proposta foi no sentido de acompanhar as mudanças sociais na
tentativa de garantir que a legislação reflita a realidade contemporânea.
No campo do direito das
famílias emerge a imprescindibilidade de um olhar mais aguçado em razão das múltiplas
transformações nos padrões de comportamento, de modo a reclamar um cuidado
especial.
Infelizmente, na
realidade em que o país ocupa o 7º lugar no ranking de feminicídio12 e
violência doméstica, é fundamental fornecer mais proteção às mulheres que são
abandonadas e permanecem na residência familiar, pois essas situações
frequentemente as deixam em uma posição de extrema vulnerabilidade econômica e
social.
A usucapião familiar
surge como importante mecanismo jurídico, permitindo que essas mulheres adquiram
a propriedade do imóvel onde residem após um período de tempo, garantindo-lhes
segurança habitacional e estabilidade. Esse instituto é crucial para assegurar
que essas mulheres não sejam desamparadas, reconhecendo seu direito à moradia e
proporcionando uma base mais sólida para reconstruírem suas vidas.
Fonte: Migalhas