No direito sucessório, qual o prazo para abertura de
Inventário? Pelo Código Civil, seria de 30 dias (CC, artigo 1796) e, de 60
dias, pelo Código de Processo Civil (CPC, artigo 611). Então, pela teoria das
normas jurídicas, se esse é o comando, a correspondente sanção seria a
impossibilidade de se abrir inventários após esses prazos? Evidentemente que
não. Não é esse o propósito daquelas normas. Teriam efeito sobre hipotéticas
multas? Não dispõem sobre isso e nem poderiam, já que ambas não têm natureza
tributária e, principalmente, porque o imposto de transmissão causa mortis é de
exclusiva competência dos estados e do Distrito Federal, como fixado pela
Constituição:
“Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal
instituir impostos sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de
1993)
I – transmissão causa mortis e doação, de quaisquer
bens ou direitos; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993)” [1]…
Escrevendo a respeito, Bruna Rabello [2] disse:
…”A atribuição de penalidades incidentes sobre o
ITCMD, como a cobrança de multa e juros, é regulada pela legislação tributária
de cada estado. […] Veja-se que por vezes nem sequer existe divergência
interpretativa a esse respeito, mas sim um problema operacional, pela cobrança
indevida de multa e juros realizada automaticamente pelo sistema fazendário,
mesmo que tenham sido observados os prazos de abertura do inventário e de
pagamento do imposto. […] o contribuinte haverá de se atentar ao prazo de cinco
anos para requerer a restituição do valor pago a maior, em conformidade com o
art. 168 do Código Tributário Nacional.”
Portanto, outra foi a intenção do legislador federal
infraconstitucional e isso é importante se considerar para se compreender o
conflito aparente de normas e os seus efeitos práticos na vida das pessoas. O
legislador federal dirigiu-se mais à sanha arrecadadora dos tesouros estaduais
e do Distrito Federal, fixando prazo razoável para o “luto” das famílias,
protegendo-as do voraz apetite tributário dos estados e do Distrito Federal.
Para os particulares, o comando normativo significa
essa proteção, sem maior efeito prático. O que importará, mesmo, é o prazo das
leis estaduais e do Distrito Federal que cuidam do tema, já, aqui, nos
antecipando que na legislação de Minas Gerais teremos o prazo de 180 dias e, no
estado do Rio de Janeiro, o de 90 dias.
Os aludidos comandos federais sobre prazos, embora
preceitos legislativos, não são normas jurídicas, no sentido conceitual, pois,
pela teoria das normas jurídicas, os elementos comando e sanção hão de estar
presentes para que o texto legal possa ser como tal categorizado e, ainda mais,
exigido, com coercibilidade.
Santiago Dantas, o grande professor de Direito
Civil, explicava:
…”Desde logo se observa uma coisa: é que numerosos
conceitos contidos num diploma legislativo, não são normas jurídicas […] não
são jurídicas, não são comandos munidos de sanção. Normas Jurídicas — As normas
jurídicas que se caracterizam pela presença desses dois elementos — comando e sanção”…
[3]
Serpa Lopes [4], invocando lições dos clássicos
europeus, ensinava:
…”refere Suarez, as simpels palavras, os fatos
tão-somente, não são capazes de criar o dever jurídico […] Por outro lado, como
diz Enneccerus […] muitos ordenamentos […] não só declaram em que consiste uma
obrigação, mas também contém o mando de cumprir a obrigação imposta, e só este
ato de mandar os eleva à categoria de Direito. […] A distinção das normas, de
acordo com a sua respectiva sanção, é justificada por Cogliolo, atendendo a ser
a sanção o meio pelo qual elas se realizam coativamente”…
Além disso, podemos até considerar que os
mencionados preceitos daquelas normas federais se aproximam da ideia de
diretriz programática, mais própria do direito constitucional e que, por exemplo,
está formulada na Constituição, quando fala que o salário mínimo deve ser
“capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com
moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e
previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder
aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim” [5].
Qual seria a sanção para a União quando não cumpre
essa diretriz programática, sobre o salário minimo, que a Constituição lhe
impõe? Nenhuma. O mesmo ocorre com as disposições suso referidas da legislação
federal sobre o prazo para abertura e conclusão dos inventários. O que importa,
portanto, nesse complexo aparente conflito de normas, são os prazos e
disposições da legislação dos estados e do Distrito Federal, que são os entes
federativos com competência para o assunto.
Súmula 542/STF
O Supremo Tribunal Federal editou a Súmula 542 [6],
reconhecendo que os entes federativos com competência para legislar sobre o
imposto de transmissão causa mortis possam, também, instituir multas. Diz a
Súmula 542/STF: “não é inconstitucional a multa instituída pelo Estado-membro
como sanção pelo retardamento no início ou da ultimação do inventário”.
O comentado verbete da Súmula da Corte Suprema foi
editado em 1969, sob o ramo “tributário”, na Sessão Plenária de 03/12/1969, ao
julgar o Recurso Extraordinário nº 44.201-SP, em que se questionava a
constitucionalidade de aspecto de lei estadual paulista. O unânime acórdão está
disponível para consulta [7], tendo sido relatado pelo ministro Victor Nunes.
Para fins de interpretação da complexa matéria, a
referida súmula, combinada com a disposição constitucional cometendo aos
estados e ao Distrito Federal a competência para a matéria, resultou na
situação que, a respeito do tema, vivenciamos após o advento da Constituição.
Repartição constitucional de
competências
Como visto, sendo tributo dos estados e do Distrito
Federal, indelegável [8], somente estes podem legislar a respeito, fixando, por
exemplo, alíquotas, multas, prazos e isenções. Entretanto, para isso, não podem
desobedecer ao comando federal que lhes é dirigido, devendo respeitar o período
“de luto” sobre o qual já falamos.
Assim, findo o prazo fixado em lei federal (no caso,
no Código Civil, derrogado pelo Código de Processo Civil), que, por sua
natureza, não tem natureza tributária e muito menos pode se imiscuir na
exclusiva competência normativa dos estados e do Distrito Federal, fica com
estes a aplicação da sua legislação a respeito.
Diante da extensão do nosso país, focaremos em
apenas dois exemplos.
Em Minas Gerais, o prazo para abertura do inventário
e pagamento do imposto, sem sanções de multa, era de 90 dias, em disposição da
lei 14.941, de 29.12.2003:
“Art. 27 – Na transmissão causa mortis em que o
inventário ou o arrolamento não for requerido no prazo de noventa dias contados
da abertura da sucessão, será cobrada multa de 10% (dez por cento) sobre o
valor do imposto devido, sem prejuízo de outras penalidades cabíveis.” [9]
(n.g.)
Esse preceito foi revogado em 2022, pela Lei
Estadual nº 17.272, de 28/12/2007. Desde então, a interpretação é que o prazo
se estendeu para 180 dias (Lei Estadual nº 14.941, de 29/12/2003 [10], artigo
13, I, combinado com o artigo 22):
“Art. 13 – O imposto será pago:
I – na transmissão causa mortis, no prazo de cento e
oitenta dias contados da data da abertura da sucessão;”…
[…]
Art. 22 – A falta de pagamento do ITCD ou seu
pagamento a menor ou intempestivo acarretará a aplicação de multa, calculada
sobre o valor do imposto devido, nos seguintes termos:”…
No estado do Rio de Janeiro, o prazo já foi de 60
dias, pela disposição do artigo 20, inciso IV, da revogada Lei Estadual 1427,
de 13.2.1989. [11] A revogação foi expressa, pelo teor do artigo 46 da nova
norma. [12] Atualmente será de 90 dias, na forma do artigo 27, inciso II,
alínea a, da Lei Estadual nº 7.174 [13], de 28 de dezembro de 2015:
“Art. 27 – omissis
§ 4º O sujeito passivo deverá prestar a declaração:
omissis
II – no prazo máximo de 90 (noventa) dias contados
da data:
a) do óbito, nas sucessões processadas de forma
extrajudicial, ou, no caso de substituição da via judicial pela extrajudicial,
da publicação da sentença que extinguir o processo sem julgamento de mérito,
nos termos do § 5º, do artigo 37 desta lei; (Redação dada pela Lei 9942/2022)”.
A partir desse considerado termo legal,
acrescentamos que a multa incidirá a partir da intimação que se fizer ao
contribuinte (artigo 30, I c/c artigo 37, I) [14].
Testamentos e codicilos
Anomalia atinge os herdeiros por testamento ou
codicilo. Explica-se: as legislações estaduais e do Distrito Federal são
omissas a respeito, o que acarreta grave impacto prático, já que, quando
estiverem presentes as hipóteses de herdeiros apenas por tais modalidades, o
termo inicial dos procedimentos de inventário só poderá ocorrer após decisão
judicial que reconheça a validade e eficácia da disposição de última vontade do
de cujus. Antes, haveria expectativa de direito.
Diante da notória morosidade do sistema judicial,
naturalmente o processamento do testamento ou do codicilo ultrapassará o prazo
das pertinentes legislações dos estados e do Distrito Federal a respeito do
imposto de transmissão causa mortis. A propósito, apenas para reflexão, o
Conselho Nacional de Justiça acaba de divulgar que, mesmo em condições normais,
tem aumentado a demora na prestação jurisdicional, desde 2015, considerando-se
apenas a tramitação na 1ª Instância:
“A Justiça Estadual de Roraima é a que julga mais
rápido em primeira instância: demora uma média de nove meses. A que mais demora
é o do Rio de Janeiro, com uma média de três anos e nove meses.” [15]
Diante disso, ocorreria o decurso do prazo das
legislações estaduais a respeito, como nos citados exemplos. Como o tesouro
estadual e distrital tendem a lançar o tributo, fariam incidir multa. Pior, o
tesouro tem a prática de emitir uma única guia, com a obrigação principal e
eventuais multas e juros, o que obriga o contribuinte a pagar e depois pedir de
volta o que indevidamente teve que recolher. Esse contexto é extremamente
odioso, injusto, abusivo e antijurídico, pois o interessado estaria sendo
penalizado pela morosidade natural do sistema de justiça.
Restará ao contribuinte deduzir pretensão junto ao
Poder Judiciário, alvitrando a repetição do indébito, para receber de volta o
que lhe for indevidamente cobrado e, a propósito, como já dito, Bruna Rabello
[16] lembra que é de cinco anos o prazo para que tal pretensão seja deduzida em
juízo: …“o contribuinte haverá de se atentar ao prazo de cinco anos para
requerer a restituição do valor pago a maior, em conformidade com o art. 168 do
Código Tributário Nacional“.
Acrescentamos a observação de que, por se tratar de
legislação estadual ou Distrito Federal, a lide se resolverá na ambiência dos
tribunais locais, não sendo cabíveis recursos ao Supremo Tribunal Federal ou
Superior Tribunal de Justiça, por se tratar de normas locais, como prevê o
óbice da Súmula 280/STF (STF, verbete 280: “Por ofensa a direito local não cabe
recurso extraordinário“).
Conclusão
Não é à toa que tanto se fala em necessidade de
reforma tributária, não obstante a proposta em curso não tenha como móvel a
modificação dessa situação, aqui tão resumidamente abordada. A verdade é que a
Constituição contém competências normativas e tributárias, concorrentes,
complementares e exclusivas, para os distintos entes federativos: União,
estados, Distrito Federal e municípios.
O conflito aparente de normas exige do intérprete o
domínio das regras de hermenêutica e, no caso do direito público, da sistemática
constitucional da repartição constitucional de competências, para adequada
solução. Aliás, embora direito das sucessões pertença ao direito privado,
legislado pelo Código Civil, ocorre migração desse sistema para o de direito
público, a partir do momento em que se trate das correlatas questões relativas
a tributação, escrituração e registros públicos, atraindo a consideração dos
princípios constitucionais da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da
impessoalidade e da publicidade [17], dentre outros, bem como das teorias sobre
motivos determinantes, nulidades e desvio de finalidade e ações mandamentais e
de improbidade.
Como visto, o contexto acarreta situações que, não
raro, causam insatisfações, injustiças, cobranças indevidas, bitributação [18]
e abusividades por parte dos entes públicos, em prejuízo dos
cidadãos/contribuintes, a quem resta recorrer ao Poder Judiciário, para a
salvaguarda dos seus direitos.
Fonte: Conjur