Decisões
recentes do STJ trazem clareza à possibilidade de usucapião em herança e
evidenciam os impactos da posse exclusiva na partilha familiar.
A
morte de um ente querido é, inegavelmente, um momento delicado, e por isso, a
divisão de bens se torna uma questão complexa que, muitas vezes, traz desafios
para as famílias. Ao explorar as recentes decisões do STJ sobre a possibilidade
de usucapião pelo herdeiro ocupante do imóvel herdado, o presente artigo busca
trazer clareza para a jornada jurídica dos herdeiros, tendo em vista a grande
importância da discussão do tema nos dias de hoje, pois protege os direitos de
todos os envolvidos, e traz à tona uma questão que pode gerar conflitos
familiares.
Nos
termos do art. 6º do CC brasileiro1, a existência da pessoa natural, ou seja,
do sujeito de direitos e deveres, possuidor de personalidade civil, se extingue
com a morte, momento este em que se dá abertura ao processo de sucessão e
transmissão automática da herança aos herdeiros legítimos e testamentários
(art. 1.784, do CC brasileiro2).
A
previsão do art. 1.784 do CC brasileiro consagra o princípio da Saisine, que
reflete uma ficção jurídica e representa a transmissão imediata do patrimônio
do falecido aos seus herdeiros ou legatários, mesmo que esses ainda não saibam
que possuem tal direito. Tal situação visa: i) não deixar os bens sem um
titular; e ii) assegurar e proteger os herdeiros. (HIRONAKA, 2011, p. 317).
Silvio
Rodrigues, por sua vez, atesta que Saisine quer dizer posse, enquanto Saisine
héréditaire significa que os parentes de uma pessoa falecida tinham o direito
de tomar posse de seus bens sem qualquer formalidade, sendo que o tema foi
transformado no brocardo "le mort saisit le vif"3, consignado no art.
724, do CC francês, que é a primeira grande positivação sobre o assunto.
Por
sua vez, é de suma importância que se defina o termo herança, para que a ideia
acerca do acervo do de cujus a ser partilhado seja devidamente trilhada. O que
se observa é que ao falecer, o indivíduo deixa um conjunto único de bens e
dívidas, considerado como seu acervo patrimonial que engloba tudo o que ela
possuía no momento da morte.
Essa
massa de bens é vista como um todo indivisível, até que seja formalmente
dividida entre os herdeiros ao final da sucessão, motivo pelo qual, termos como
espólio e acervo comum são usados para se referir a essa totalidade, que só se
tornará individualizada para cada herdeiro após o processo de partilha.
Segundo
Paulo Nader a herança pode ser conceituada, abrangendo um aspecto mais amplo,
quais sejam: "[...], corresponde à totalidade das relações jurídicas
deixadas por morte, abrangendo, portanto, direitos e obrigações. Strictu senso
refere-se aos bens efetivos devidos aos herdeiros, pós o pagamento das dívidas.
O vocábulo é empregado, ainda, ora em sentido objetivo, para indicar o
patrimônio deixado pelo de cujus, ora sentido subjetivo, como fenômeno de
sub-rogação dos herdeiros nos direitos e obrigações. [...]" (NADER, 2016,
p.5).
Assim,
com a morte da pessoa natural, inicia-se a sucessão de seus bens,
transmitindo-se assim a totalidade de seu espólio aos seus herdeiros, legítimos
ou testamentários que, ao final da partilha, serão detentores das suas cotas
parte.
Um
ponto interessante e que gera severas discussões no momento da sucessão, diz
respeito ao herdeiro que permanece no imóvel do falecido, antes mesmo da
finalização da partilha, exercendo a posse mansa e pacífica do bem, mantendo as
contas em dia e realizando benfeitorias.
Neste
contexto é que surgem os importantes e recentes entendimentos do STJ sobre o
tema, que podem ter um impacto significativo na forma como os bens de herança
são administrados no país. O Tribunal Superior consolidou o entendimento de
que, em certas circunstâncias, um herdeiro que ocupa de maneira exclusiva e
contínua um imóvel deixado pelo de cujus, durante a tramitação do inventário,
pode, por meio da usucapião, adquirir a totalidade da propriedade do bem.
A
tese foi consolidada no julgamento do agravo interno no REsp 2.355.307/SP4, e
reforçou o que já havia sido tratado no julgamento do REsp 1.631.859/SP5. Na
decisão, publicada em 27/6/2024, o d. ministro Raul Araújo, consignou que:
"[...]
Ocorre que a jurisprudência desta Corte se firmou no sentido de que há
possibilidade da usucapião de imóvel objeto de herança pelo herdeiro que tem
sua posse exclusiva, ou seja, há legitimidade e interesse de o condômino
usucapir em nome próprio, desde que exerça a posse por si mesmo, ou seja, desde
que comprovados os requisitos legais atinentes à usucapião extraordinária.
[...] (ARAÚJO, 2024, p. 4).
Observa-se
que a decisão valida a possibilidade de um herdeiro que ocupa sozinho um bem de
família por um período prolongado e se comporta como seu único proprietário, de
fato, ter o direito de reivindicar a posse completa, mesmo que outros
familiares também tenham direitos sobre o mesmo imóvel.
Essa
tese, entretanto, não implica na transferência automática da propriedade. É
indispensável iniciar um processo legal de usucapião, apresentando provas
suficientes de que todas as condições previstas em lei foram cumpridas para que
a posse exclusiva seja transformada em propriedade legal.
Neste
sentido, a parte interessada deve observar as diretrizes da usucapião
extraordinária (art. 1.238 e parágrafo único do CC brasileiro6). Os prazos
exigidos pela legislação variam, sendo que a posse deve ser de 15 (quinze) anos
contínuos e sem contestação para a modalidade comum, podendo essa exigência de
tempo ser reduzida para 10 (dez) anos, caso o herdeiro prove que utilizou a
propriedade para fins de moradia permanente ou que realizou melhorias
significativas e úteis no local.
Neste
contexto, para o herdeiro, a usucapião extraordinária se mostra como
possibilidade de transformar a posse em propriedade legal, desde que ele se
comporte como o único proprietário e cumpra todos os requisitos da lei,
comprovando a posse exclusiva com o recolhimento de impostos e pagamentos de
contas diversas, tudo isso sem oposição dos demais herdeiros.
A
nova interpretação da lei também gera alertas para os outros herdeiros. Quem
não mora no imóvel e não compartilha da posse pode perder sua cota-parte na
propriedade se não agir para proteger seus direitos.
É
crucial que os herdeiros fiquem atentos à situação e busquem aconselhamento
legal rapidamente, especialmente se um dos familiares estiver usando o imóvel
de forma exclusiva.
Fonte:
Migalhas