Marcelo
Lessa da Silva
Análise
mostra o potencial da desjudicialização brasileira, com cartórios e filtros
italianos, como referência global para frear a hiperjudicialização.
Introdução
O
direito fundamental de acesso à Justiça, consagrado no constitucionalismo
contemporâneo, enfrenta no Brasil um desafio de escala monumental: a
hiperjudicialização. Em 2023, o Poder Judiciário brasileiro recebeu um volume
recorde de 35 milhões de processos novos, culminando em um acervo total de 83,8
milhões de ações pendentes (CNJ, 2024). Este cenário de sobrecarga estrutural
não apenas compromete a celeridade, como também impõe um custo social e
econômico insustentável.
Em
contraponto, uma revolução silenciosa, protagonizada pelas serventias
extrajudiciais, vem redesenhando o mapa do acesso à Justiça. O modelo
brasileiro se diferencia de outras nações de tradição latina, onde notários e
registradores são frequentemente vinculados ao Poder Executivo. No Brasil, a
Constituição Federal estabeleceu um sistema peculiar e robusto: o serviço é
prestado em caráter privado, mas por delegação do Poder Judiciário, que
normatiza e fiscaliza a atividade. Essa característica singular transforma o
foro extrajudicial em um braço forte, imparcial e capilarizado da própria
Justiça, alinhado às necessidades dos jurisdicionados.
Este
artigo analisa, em perspectiva comparada, os modelos de desjudicialização do
Brasil e da Itália, defendendo a tese de que, embora a Itália tenha um sistema
consolidado de filtros processuais obrigatórios (MAIA, 2023), o Brasil
desenvolveu uma infraestrutura extrajudicial mais robusta e funcionalmente
diversificada, cujo potencial, se combinado à lógica dos filtros italianos,
pode criar um paradigma inovador e eficiente de justiça multiportas.
1.
A cultura da litigiosidade: Um ciclo vicioso de sobrecarga
Os
números oficiais do CNJ pintam um quadro alarmante. O acervo de 83,8 milhões de
processos significa que o Judiciário levaria aproximadamente 2 anos e 5 meses
para zerar seu estoque, mantido o ritmo atual (CNJ, 2024). O problema, contudo,
não reside na produtividade de magistrados e servidores. Pelo contrário, os
dados demonstram um esforço hercúleo para dar vazão à demanda: o IPM - Índice
de Produtividade da Magistratura cresceu 6,8% em 2023, com uma média de 8,6
casos solucionados por juiz a cada dia útil (CNJ, 2024).
A
raiz da crise está no ciclo vicioso gerado pela cultura da litigiosidade,
alimentada por um acesso à Justiça irrestrito e pela ausência de filtros
pré-processuais eficazes. O surgimento de novos direitos e a percepção social
de que o Judiciário é a única via para a resolução de conflitos resultam em um
ingresso avassalador de novas ações, sobrecarregando a máquina judiciária e
perpetuando a morosidade. Mesmo com recordes de produtividade, o estoque
continua a crescer porque a "porta de entrada" é larga demais.
Torna-se, portanto, imprescindível a criação de mecanismos que exijam a
demonstração concreta do interesse de agir antes que o aparato judicial seja
movimentado.
É
nesse contexto que o paradigma da Justiça multiportas (multi-door Courthouse),
idealizado por Frank Sander e introduzido no Brasil pela resolução CNJ 125/10,
ganha força (FOGAÇA; SOUZA NETTO; PORTO, 2021). A proposta de transformar os
tribunais em centros de triagem, encaminhando cada conflito à "porta"
mais adequada, valoriza a consensualidade e estabelece uma relação de
complementaridade, e não de rivalidade, entre as esferas judicial e
extrajudicial.
2.
A desjudicialização à brasileira: O foro extrajudicial como aliado do Estado e
da cidadania
A
estratégia brasileira de desjudicialização materializa-se na delegação
progressiva de competências ao foro extrajudicial. Essa delegação é a
manifestação de uma aliança: o Poder Judiciário, assoberbado por demandas que
não envolvem litígio (jurisdição voluntária), transfere a execução desses atos
a agentes dotados de fé pública. Atos como divórcios, inventários, usucapião e
adjudicação compulsória migraram para as mais de 12.512 serventias
extrajudiciais (ANOREG/BR, 2024), garantindo uma capilaridade que nenhuma outra
instituição possui.
Os
resultados dessa política são expressivos. Desde 2007, os mais de 2,3 milhões
de inventários e 1 milhão de divórcios realizados em cartório geraram uma
economia estimada de R$ 6,2 bilhões e R$ 2,7 bilhões, respectivamente
(ANOREG/BR, 2024). Essa transferência de atribuições é sustentada pela
confiança da população: uma pesquisa do Instituto Datafolha revelou que os
cartórios são a instituição mais confiável do Brasil, com nota média de 7,9 em
10 (ANOREG/BR, 2024).
A
legislação recente tem aprofundado essa colaboração. A lei 13.484/17, ao
alterar a lei de registros públicos (lei 6.015/1973), instituiu os
"ofícios da cidadania", autorizando os cartórios de registro civil a
prestar outros serviços remunerados mediante convênio. Essa visão foi expandida
pela lei 14.711/23, que, ao alterar a lei dos notários e registradores (lei
8.935/1994), formalizou a atuação de tabeliães como mediadores, conciliadores e
árbitros (art. 7º-A). Essa estrutura transforma os cartórios em potenciais
"postos avançados" da Administração Pública, capazes de oferecer
serviços de cidadania de forma capilarizada e próxima da população, reforçando
seu papel como parceiros do Estado (LESSA, 2024).
3.
O modelo italiano: A eficiência dos filtros obrigatórios
A
Itália, enfrentando uma crise crônica de morosidade judicial, adotou uma
estratégia distinta: a imposição de filtros rigorosos para o acesso à Justiça.
O decreto legislativo 28/10 instituiu a mediazione obbligatoria (mediação
obrigatória) como condição de procedibilidade para uma vasta gama de matérias
cíveis e comerciais (GARANI; DENARDI, 2021). A ausência de uma tentativa válida
de mediação implica a inadmissibilidade da ação judicial (MAIA, 2023). Contudo,
o papel do notário italiano (notaio) nesse processo é consideravelmente mais
restrito que o de seu par brasileiro. A mediação, embora possa ser conduzida
por notários credenciados, ocorre em estruturas autônomas, não sendo uma função
inerente à atividade cartorária como vem se consolidando no Brasil (GARANI;
DENARDI, 2021).
4.
Proposta de integração sistêmica: Unindo a força colaborativa brasileira à
racionalidade italiana
A
análise comparada revela um paradoxo fascinante: o Brasil construiu uma
estrutura extrajudicial funcionalmente mais ampla, capilar e integrada, mas,
até recentemente, carecia de um mecanismo geral de filtragem processual
obrigatória (LESSA, 2024). A Itália implementou filtros eficazes, mas sem
aproveitar todo o potencial resolutivo de seu qualificado notariado (MAIA,
2023).
A
proposta que emerge desta análise é a síntese dos dois modelos, fortalecida
pela visão do foro extrajudicial como um aliado do Poder Judiciário. O Brasil
está em posição privilegiada para estender a lógica do filtro obrigatório, já
inaugurada na seara fiscal pela resolução CNJ 547/24, para as demais áreas do
direito, utilizando a rede de cartórios como os centros operacionais dessa
política. A estrutura normativa para tal já existe, com a lei 14.711/23 e o
próprio CPC.
A
implementação de uma mediação ou conciliação pré-processual obrigatória,
conduzida nos cartórios sob a coordenação dos CEJUSCs - Centros Judiciários de
Solução de Conflitos e Cidadania, transformaria o "interesse de agir"
de uma presunção abstrata em um requisito concreto (FOGAÇA; SOUZA NETTO; PORTO,
2021). A possibilidade de celebração de convênios, prevista nas leis 6.015/1973
e 8.935/1994, reforça ainda mais este potencial, permitindo que os cartórios se
tornem verdadeiros centros de cidadania.
Conclusão
A
crise de litigiosidade não será resolvida com mais recursos para a mesma
estrutura, mas com o fortalecimento de uma rede de Justiça colaborativa e
multiportas. A experiência brasileira com a desjudicialização demonstra que o
caminho da descentralização, quando realizado sob a supervisão e em aliança com
o Poder Judiciário, é bem-sucedido. Ao incorporar a racionalidade dos filtros
procedimentais obrigatórios do modelo italiano e explorar todo o potencial de
sua capilaridade para a prestação de múltiplos serviços públicos, o Brasil tem
a oportunidade única de consolidar um sistema de Justiça verdadeiramente
plural, eficiente e próximo do cidadão. A revolução silenciosa dos cartórios,
como aliados da Justiça, pode, assim, tornar-se a vanguarda de um novo paradigma
de acesso à cidadania para o mundo.
ASSOCIAÇÃO
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Especial Desjudicialização. 6. ed. Brasília, DF: Anoreg/BR, 2024.
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BRASIL.
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Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 nov. 1994.
BRASIL.
Lei nº 13.484, de 26 de setembro de 2017. Altera a Lei nº 6.015, de 31 de
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União, Brasília, DF, 27 set. 2017.
BRASIL.
Lei nº 14.711, de 30 de outubro de 2023. Dispõe sobre o aprimoramento das
regras de garantias, a execução extrajudicial de créditos garantidos por
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Oficial da União, Brasília, DF, 31 out. 2023.
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Fonte:
Migalhas