O
reconhecimento da filiação, seja ela biológica ou socioafetiva, é uma questão
de extrema relevância no âmbito do Direito de Família e das Sucessões e está
alicerçado em princípios constitucionais como o da dignidade da pessoa humana
(art. 1º, III, da Constituição Federal), da igualdade entre os filhos (art.
227, § 6º, da Constituição) e do melhor interesse da criança e do adolescente.
A legislação infraconstitucional, como o Código Civil, reforça essa visão,
especialmente em seus arts. 1.593 (que reconhece as várias formas de
parentesco) e 1.607 (que regula o reconhecimento de filhos).
A
resolução 571, de 27/8/24, deu nova redação à resolução 35/CNJ, introduzindo
diversas alterações significativas no intuito de promover a desjudicialização e
garantir maior celeridade em assuntos relacionados a inventário, partilha,
separação consensual, divórcio consensual e extinção consensual de união
estável. Foi, assim, autorizada a extrajudicialização do inventário, mesmo
quando as partes sejam pessoas menores ou incapazes, desde que observados os
requisitos previstos nos incisos do art. 12-A.
Os
requisitos a serem observados são os seguintes: Pagamento do quinhão
hereditário do menor ou da meação do incapaz em parte ideal em cada um dos bens
inventariados e manifestação favorável do Ministério Público, sendo
expressamente vedada a prática de atos de disposição relativos aos bens ou
direitos do interessado menor ou incapaz, conforme § 1º do mesmo artigo.
O §
2º do art. 12-A da resolução 35/CNJ, incluído pela resolução 571/CNJ,
estabelece que, havendo nascituro do autor da herança, para a lavratura do
inventário, deverá ser aguardado o registro de seu nascimento com a indicação
da parentalidade, ou a comprovação de não ter nascido com vida. A disposição do
§ 2º é compreensível, pois a partilha muda a depender de ocorrer ou não o
nascimento com vida desse herdeiro. Assim, a resolução 571 bem regulamentou
essa questão do nascituro. Por outro lado, não se pode compreender o disposto
no art. 12-B, § 1º, da resolução aqui comentada, que traz a vedação do
inventário extrajudicial se na certidão do testamento for constatada a
existência de disposição reconhecendo filho.
Ora,
sabe-se que o reconhecimento de filho no testamento é disposição irrevogável,
conforme estabelece a lei 8.560/92, em seu art. 1º, III, e o CC brasileiro, em
seu art. 1.609, inciso III. Assim, se constar do testamento válido esse
reconhecimento, muito dificilmente deixará de ser considerada essa declaração,
pois a anulação do reconhecimento somente será admitida nos casos de existência
de vício de consentimento no ato jurídico realizado, o que deverá ser feito
judicialmente, na via adequada a este procedimento.
Cabe
enfatizar que ambas as modalidades de filiação, biológica e socioafetiva, podem
ser objeto de testamento. Havendo no testamento o reconhecimento de filiação, e
sendo o testamento válido, o meeiro(a) e sucessores devem aceitar tal fato e
proceder à inclusão de mais um herdeiro no inventário. Se todas as partes
aceitarem o novo herdeiro, não há razão para ser obrigatória a via judicial.
Havendo consenso entre as partes, não se pode conceber da proibição da opção
pela via extrajudicial. Seria perfeito que o CNJ tivesse determinado que, antes
de prosseguir no inventário, fosse averbado no registro civil o nome do pai ou
da mãe, de modo que o reconhecimento do filho esteja refletido no seu registro
civil, na mesma lógica estabelecida para o caso do nascituro.
A
melhor hipótese ventilada para justificar a redação da norma que veda o
inventário quando há reconhecimento de filho no testamento é a de que a
resolução 571 desconsiderou o fato de que o reconhecimento de paternidade pode
ser feito diretamente no Registro Civil das Pessoas Naturais, por isso é
importante reforçar que não é necessário mover a máquina judiciária para a
averbação da paternidade ou maternidade no registro do filho. No caso de o pai
biológico ter falecido, vale o testamento como manifestação de vontade dele,
como autorizam a lei 8.560/92 e o Código Civil vigente. Já para o
reconhecimento socioafetivo, há previsão expressa da aceitação do testamento
como manifestação da vontade do pai ou da mãe no provimento 149/CNJ, em seu
art. 507, § 8º.
Assim,
necessário se faz a revisão do disposto na resolução 35/CNJ, quanto ao
afastamento da via extrajudicial quando houver filho reconhecido no testamento.
Enquanto não houver tal revisão, sugere-se que, quando for apresentado ao Juiz
o testamento para fins de seu registro, abertura e cumprimento1, seja informado
ao Juiz que a averbação da paternidade ou maternidade já foi realizada e seja
solicitada a autorização para a lavratura extrajudicial do inventário.
A
resolução 35/CNJ, a nova resolução 571/CNJ, bem como outras normas que ampliam
as possibilidades de atuação extrajudicial consolidam a tendência à
desjudicialização. Contudo, necessário se faz que sejam eliminadas barreiras
desnecessárias, haja vista serem os atos notariais e registrais consagrados
como instrumentos plenos e legítimos de resolução de questões familiares e
patrimoniais.
_________
1 A
autorização judicial é obrigatória em qualquer hipótese de existência de
testamento, nos termos dos incisos do art. 12B, da Resolução nº 35/CNJ, na nova
redação dada pela Resolução 571/CNJ.
Fonte:
Migalhas